Wilson Witzel. Nunca houve uma ascensão nem uma queda assim

Deputados do Rio de Janeiro votaram, por unanimidade, a favor do<em> impeachment</em> do governador. Acusado de desvio de dinheiro, o ex-juiz ganhou as eleições há menos de dois anos, cavalgando a onda da "nova política" pós-Lava Jato com discurso implacável contra o crime e a corrupção
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Na madrugada de quinta-feira, os 69 deputados da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) decidiram, por esclarecedores 69 votos a favor, zero contra e zero abstenções, a abertura de um processo de impeachment ao governador do estado Wilson Witzel. Todos, de direita, de esquerda ou de centro, votaram contra o ex-juiz, acusado pelo ministério público de liderar "uma sofisticada organização criminosa" que desviou verbas da pasta da saúde. Até os seis parlamentares do seu partido, o Partido Social Cristão (PSC). Até mesmo os cinco que votaram à distância por estarem presos por corrupção.

Não há memória de uma queda tão abrupta na política do Brasil como a de Witzel, de 52 anos. Mas, há menos de dois anos, também não havia memória de uma ascensão tão extraordinária, como a do ex-magistrado nascido em Jundiaí, no estado de São Paulo, filho de um metalúrgico de ascendência alemã e de uma dona de casa.

Quando, em março de 2018, decidiu candidatar-se a governador pelo PSC, Witzel não tinha, literalmente, um único dia de experiência política. Deixava 17 anos de carreira como juiz, para apostar na onda eleitoral, nascida após a Lava-Jato, de escolher "não políticos" para o lugar antes ocupado por "políticos tradicionais", na sua maioria atingidos pela operação liderada pelo também juiz Sérgio Moro.

Na primeira sondagem, de agosto daquele ano, Witzel somava 1%. Mas na última, publicada às vésperas do sufrágio, já somava 17%, empatado no segundo lugar com o antigo jogador e atual senador Romário e dez pontos atrás do favorito Eduardo Paes, ex-prefeito da capital estadual. Na eleição, entretanto, somaria incríveis 41%, goleando Paes, 19%, e Romário, que ficou fora da segunda volta.

Com discurso implacável nos combates à corrupção e ao crime organizado e ainda o decisivo apoio da família Bolsonaro, cuja base eleitoral é o Rio, mesmo virtualmente desconhecido tornou-se governador com quase 60% dos votos (um milhão e meio a mais do que Paes).

"O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai mirar na cabecinha e fogo, para não ter erro", disse, nas horas seguintes à votação, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo onde se apresentava nacionalmente.

Meses depois, quando um sequestrador de um autocarro foi abatido pela polícia em direto pela televisão, o governador desceu de helicóptero no local e comemorou aos saltos e aos socos na atmosfera.

Participou, com o mesmo entusiasmo, de uma operação aérea, devidamente gravada em vídeo nas suas redes sociais, "para dar fim à bandidagem", segundo as suas palavras, na estância balnear de Angra dos Reis. Na operação, os polícias dispararam uma rajada de metralhadora contra o que lhes parecia uma cabana de traficantes de droga - era um lugar de culto evangélico, por sorte, vazio à hora dos disparos.

"Passei perto da Rocinha, nunca subi, mas não é preciso subir para saber que lá é ruim", afirmou, noutra ocasião, a propósito da maior favela do Rio, com população superior a 70 mil habitantes, na sua esmagadora maioria honestos trabalhadores cariocas.

"No Leblon, Copacabana, Ipanema, Botafogo, Flamengo não há homicídios, os homicídios infelizmente estão nas comunidades onde há tráfico e milícia, o turista vem para cá para os equipamentos turísticos, não para cima do morro, e aí estamos no mesmo patamar de Nova Iorque, Paris, Madrid", acrescentou.

Witzel disse ainda que o Rio precisava de ter "uma Guantánamo", aludindo à prisão militar norte-americana com histórico de tortura a presos.

O ano de 2019 tornou-se recordista de mortes cometidas por polícias no Rio - 1810 - de acordo com o Instituto de Segurança Pública. Em fevereiro, registou-se a ação policial mais letal da história da cidade, com a morte de 13 pessoas em morros da região de Santa Teresa. Numa semana de julho, cinco jovens morreram em diferentes comunidades carentes na decorrência de balas perdidas disparadas pelas autoridades.

Antes destas frases de depois de eleito, Witzel só se havia feito notar, em campanha, por ajudar a quebrar em pedaços, ao lado de dois deputados bolsonaristas, Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, uma placa de homenagem a Marielle Franco, a vereadora de esquerda assassinada meses antes.

Por ironia, Marielle pode ter contribuído para a sua queda.

Logo no início de 2019, dias após a posse como governador, Witzel começou a falar, primeiro reservadamente, depois em público, na intenção de se candidatar à presidência em 2022. Amigos deram conta, em reportagens na imprensa, do costume do governador de enviar fotomontagens suas com a faixa presidencial vestida por grupos de Whatsapp.

Essas insinuações, aliadas ao apoio à recondução de André Ceciliano, do Partido dos Trabalhadores (PT), como presidente da ALERJ, feriram a relação de Witzel com o clã Bolsonaro, que fora essencial para a sua eleição. "Ingrato!", chegou a classificar Flávio Bolsonaro, senador e primogénito de Jair Bolsonaro.

Mas a ruptura definitiva entre o Palácio do Planalto, sede do governo federal, e o Palácio Guanabara, sede do governo fluminense, surgiu em outubro, quando Jair Bolsonaro atribuiu ao ex-aliado uma fuga de informação para a TV Globo que envolvia o nome do presidente no homicídio de Marielle - supostamente, um porteiro do condomínio onde viviam tanto Bolsonaro como Ronnie Lessa, presumível autor dos disparos, recebeu autorização do próprio Bolsonaro para a entrada no local do cúmplice de Lessa horas antes da execução.

Witzel não gostou de se sentir acusado e retirou apoio ao presidente. Meses depois, já em maio desde ano, por, ao contrário de Bolsonaro, defender medidas rígidas de isolamento no combate à pandemia, pediu "desculpas ao povo".

"Por ter ajudado a eleger um presidente irresponsável que só pensa nas eleições de 2022", acrescentou.

E no dia 26 do mesmo mês, foi alvo de um mandato de busca e apreensão em sua casa, no âmbito da Operação Placebo, para investigar os desvios de dinheiro público que culminariam na tal votação, por 69-0, desta semana. Na véspera, a deputada Carla Zambelli, feroz aliada de Bolsonaro, havia antecipado "operações policiais contra governadores" em entrevista à Rádio Gaúcha, no que foi entendido por Witzel e por observadores políticos como sinal da interferência presidencial no processo.

O presidente chegou a rir do episódio em manifestação pública ao lado de apoiantes.

Noutro estado, em Santa Catarina, outro ex-bolsonarista, Carlos Moisés, que se aproximou politicamente de João Doria, governador de São Paulo e rival do presidente, também passou a enfrentar processo de impeachment após a rutura com o Planalto.

"Flávio Bolsonaro é que devia estar preso!", reagiu, entretanto, o governador.

O filho mais velho do presidente da República é acusado de liderar uma organização criminosa de proporções milionárias que ao longo de décadas desviou o salário dos seus assessores enquanto deputado estadual do Rio. De acordo com as investigações, o esquema serviu para o clã comprar imóveis e dinheiro vivo. Uma loja de chocolates de que Flávio era sócio funciona como lavandaria de dinheiro, acrescenta o ministério público.

Em agosto, por decisão judicial, Witzel foi afastado do cargo por 180 dias. É acusado de liderar uma organização criminosa, em que participam também a sua mulher, a advogada Helena Witzel, e o Pastor Everaldo, presidente do PSC, candidato presidencial em 2014 e autor do batismo de Jair Bolsonaro no rio Jordão, em Israel, em 2015.

O último passo antes do provável impeachment foi o 69-0 da madrugada de quinta-feira.

"O que tem acontecido é algo absolutamente injusto. Não tive o direito de falar nem na ALERJ nem nos tribunais. Estou sendo linchado moralmente, linchado politicamente, sem direito de defesa", disse Witzel, instantes antes daquela votação, por videoconferência.

"Agradeço a oportunidade, senhor presidente André Ceciliano, por exercer o meu sagrado direito de defesa nessa histórica tribuna, ainda que virtualmente, do Palácio que leva o nome de Tiradentes, símbolo da luta pela liberdade e contra a opressão. Tiradentes, que foi delatado, vendido, morreu enforcado e as partes do seu corpo foram jogadas em praça pública para servir de exemplo para a tirania", continuou.

"A tirania escolhe as suas vítimas e as expõe para que outras não mais se atrevam. Felizmente, a História mostra que mártires nunca morrem. Exemplos sempre são seguidos e exemplo maior nosso é Cristo Jesus, delatado e vendido entre os seus apóstolos".

Witzel comparou-se a ainda a Collor de Mello, presidente alvo de impeachment em 1989 que se declara inocente.

O ex-juiz alçado ao poder na onda da Lava-Jato criticou também "a judicialização da política". "Se a ALERJ aderir ao lavajatismo, não haverá mais quem possa defender a sociedade".

O político será agora julgado por um Tribunal Misto, composto por cinco juízes e cinco deputados, que tem até 180 dias para se manifestar.

O eventual impeachment de Witzel não é um ponto fora da curva na política do Rio de Janeiro. Nos últimos quatro anos, cinco ex-governadores chegaram a ser presos: Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Moreira Franco, Rosinha Garotinho e Anthony Garotinho.

Nos últimos 20 anos, de todos os políticos que governaram o estado do Rio antes de Witzel, só Benedita da Silva (do PT) - que assumiu em 2002, após Garotinho deixar o cargo para se candidatar à presidência - e Francisco Dornelles (do PP) - vice-governador de Pezão, que ficou no cargo por pouco mais de um mês em 2018 - escaparam da cadeia.

Além deles, desde a redemocratização, nos anos 80, apenas um outro governador ainda vivo figura entre os governadores do Rio que nunca foram presos: Nilo Batista, que substituiu Leonel Brizola em abril de 1994 quando este saiu do cargo para concorrer à presidência.

Como Nilo, Benedita e Dornelles eram vices, todos os govenadores ainda vivos eleitos, de facto, para o cargo, foram implicados em escândalos de corrupção.

Atualmente, além de Witzel, também o prefeito da cidade do Rio, o bispo da IURD Marcelo Crivella tem a justiça à perna: o Tribunal Superior Eleitoral considerou-o inelegível até 2026. Mas o autarca, sobrinho de Edir Macedo, recorreu.

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