Vasco Rato: "O fenómeno Trump não é muito diferente dos populismos que varrem a Europa"

O presidente da FLAD fala das presidenciais americanas, das diferenças entre o Canadá onde cresceu e os Estados Unidos que tanto visita e ainda da crise da Europa
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É pela boa comida, pela tranquilidade e também "pelo facto de o sr. Luís ser um grande sportinguista" que Vasco Rato escolhe O Tachinho, um pequeno restaurante em Campo de Ourique, bairro hoje tão na moda em Lisboa. "Venho aqui algumas vezes. Gosto do ambiente. Pode-se com sorte encontrar até algum jogador do Sporting, como o Rui Patrício, o grande Rui Patrício. E além disso pode-se fumar", justifica o homem que além de leão é presidente da FLAD desde 2014 e por isso uma figura-chave nas relações entre Portugal e os Estados Unidos. Em ano de presidenciais americanas, é evidente que falaremos de Donald Trump e de Hillary Clinton, mas já lá vamos.

Não demoramos a decidir os pratos, mesmo que, em tom de brincadeira, Vasco Rato diga que "poderia escolher cherne, mas podia ser mal entendido": bifinhos de peru grelhados para ambos, com legumes a acompanhar. "Não sou aquilo que chamam um foodie. E tento compensar o fumar com uma alimentação saudável e exercício", explica. Também nunca bebe vinho ao almoço e por isso pede água tónica. Pergunto se é fã de hambúrgueres, já que viveu na América e vai lá muitas vezes por causa da FLAD. "Em Portugal não costumo comer, mas nos Estados Unidos sim. Não no McDonald"s, mas numa cadeia chamada Five Guys, que começou em Washington e agora é um sucesso." Admito que não conheço a marca, apesar de ter regressado há dias de uma viagem que incluiu uma ida à capital americana. Vasco Rato explica como a descobriu, levado há uns anos pelos filhos, quando dava aulas em Georgetown (2007-2009), a mesma universidade onde uma década antes se tinha doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais. "Desafiaram-me. E lá fui ao Five Guys. Tinha um ar manhoso, num edifício degradado de Washington. Mas eram mesmo bons os hambúrgueres."

Pois bem, o doutoramento foi nos Estados Unidos, mas nas minibiografias que surgem sempre que dá uma entrevista aparece a Universidade de Manitoba como sítio da licenciatura. "A explicação é simples. Cresci no Canadá. Fui com a família quando tinha 10 anos. E ainda tentámos regressar em 1975, mas era o período revolucionário, recordo-me dos governos a caírem e parecia que o país ia descambar. Assim, fiz a universidade no Canadá e só voltei de vez em 1986", conta Vasco Rato, nascido em 1962 "perto de Fátima, em Moitas Venda".

Falamos do Canadá, que descreve como "uma social-democracia perfeita, um país com grande qualidade de vida, com uma sociedade muito solidária". Nota que viveu lá nos tempos de Pierre Trudeau, pai do atual primeiro-ministro, Justin, um governante jovem que se rodeou de ministros e ministras que mostram a diversidade da sociedade - basta olhar para os turbantes sikhs na foto da tomada de posse em novembro. Admito que só conheço o Quebeque, o bastião francófono do país, e Vasco Rato logo acrescenta que na província "o velho problema do separatismo está ultrapassado". Tudo isto parece conhecimento natural de quem viveu no país, mas ao longo da conversa descubro um cientista político (área também da licenciatura) que é craque em história, falando com tanto à-vontade dos tempos da fuga dos realistas americanos em 1776 para o Canadá britânico como dos dramas do Império Otomano. Ainda há tempos esteve na célebre Sarajevo, capital de uma Bósnia habituada a ser palco de acontecimentos. Fico ainda a saber que todos os anos faz uma viagem com os filhos para lhes mostrar uma zona do mundo. São três: João, que acaba de se formar em Economia na Nova, Manuel, um futuro engenheiro que anda no Técnico, e Pedro, o mais novinho, só com 10 anos.

Regresso ao tema Canadá. Que diferenças tem em relação ao poderoso vizinho a sul? "Quem viaja através dos dois países pode não reparar nas diferenças, mas quem vive nota. De uma forma muito simplificada, dir-se-á que o Canadá é praticamente um país europeu, que contrasta muito com os Estados Unidos, por exemplo, na forma como foi concebido o Estado social ou na integração dos imigrantes", responde o presidente da FLAD. Ou seja, não existem os excessos individualistas dos Estados Unidos, onde até o Obamacare gera polémica, nem a pressão assimilacionista, o famoso melting pot . Há, porém, realça Vasco Rato, pontos em comum, como "a facilidade na ascensão social". Aliás, e numa comparação com a Europa, atribuiu muitos problemas na integração das comunidades imigrantes nos países do Velho Continente à quase ausência de "mobilidade social". Não deixa, aliás, quando fala das sociedades europeias como arcaicas, de criticar Portugal. "Em 40 anos de democracia, só um deputado negro? E só agora uma ministra negra?", interroga-se este homem que é militante do PSD, chegou a ser dirigente partidário e, como ribatejano, protagonizou ainda uma candidatura à Câmara de Vila Franca de Xira, apesar de ser sobretudo como académico que as pessoas o identificam. Está ligado à Universidade Lusíada e, claro, à Universidade Georgetown.

Reparo que tirando um "está bom" não faz mais nenhum comentário à comida. Confirma-se que não é um foodie, palavra que diz com uma ligeira pronúncia que o próprio admite ter-lhe ficado da vivência no Canadá. Dispensamos a sobremesa e enquanto esperamos pelo café o nome Trump surge pela primeira vez na conversa. Promete. Mas o melhor é começar por esse 1992-1994 em que Vasco Rato estudava para o PHD. "Foi um período engraçado. Apanhei a primeira eleição de Bill Clinton." Belo exemplo de mobilidade social, sublinho, contando como em 2000 numa reportagem para o DN sobre as presidenciais estive em Hope, no Arkansas, a terriola onde um Bill órfão de pai e com a mãe fora a estudar para enfermeira foi criado pelos avós donos de uma mercearia. O presidente da FLAD concorda, mas diz que "Barack Obama é ainda melhor exemplo do american dream do que Clinton".

Vasco Rato sugere que nos mudemos para a esplanada. Os cafés irão lá ter, garante o sr. Luís. E se a conversa continua a ser sobre o sonho americano e a América, "um país que recompensa quem trabalha", o nome Cristiano Ronaldo surge de rompante e com uma surpreendente analogia: "Admiro muito Ronaldo. É um exemplo do que pode fazer o trabalho somado ao talento. Na América há muitos Ronaldos no desporto. Lá foi o motor de ascensão social mais cedo do que na Europa. É o reino do mérito e por isso nos dá os novos heróis. Na música passa-se algo parecido."

Mas se os desportistas são admirados, em relação a muitas outras profissões cresce a desconfiança, refere o académico. "Suspeita-se de tudo e de todos. Dos advogados, dos médicos, dos empresários, dos políticos. E essa suspeição corrói o sistema social." Ora aqui está a oportunidade para se dissecar o fenómeno Trump, o magnata que quer ser eleito presidente dos Estados Unidos a 8 de novembro insistindo ser o candidato antipolíticos. "O fenómeno Trump não é muito diferente dos populismos que varrem a Europa, não é muito diferente do fenómeno Marine Le Pen, mesmo que os populistas possam ser de extrema-direita e de extrema-esquerda", afirma Vasco Rato. No caso dos Estados Unidos, este sucesso de Trump nas primárias republicanas tem também muito que ver com a polarização das últimas décadas: "Essa é uma das razões que explicam o surgimento de Trump. Uma das mensagens dele é que Washington está partida, não funciona, que o sistema deixou de funcionar. Em parte deixou, porque se tem polarizado, porque os partidos se têm radicalizado nos últimos vinte anos e, portanto, Trump é um sintoma do problema ao mesmo tempo que explora esse problema. E só pode agudizar o problema, como aliás tem vindo a fazer. O que é necessário fazer nos Estado Unidos é tentar criar consensos em volta de problemas complexos em vez de simplificá-los e propor soluções que não o são."

Significa isto que o presidente da FLAD é um entusiasta da democrata Hillary? Bem, prefere fazer uma avaliação em termos do que significa para a Europa a vitória de um ou outro: "O menos mau para a Europa é claramente Hillary Clinton, porque há certamente mais garantias de continuidade com Hillary Clinton do que com Trump. Trump a ganhar a presidência poderá provocar muitos estragos, sobretudo na Aliança Atlântica." Noto preocupação nas palavras. Vasco Rato prossegue: "Estamos praticamente no início da campanha eleitoral e Trump já conseguiu criar imensas interrogações sobre o artigo 5.º da NATO, sobre o futuro da própria NATO, para não falar das relações com o México e com outros países. Além disso, tem dado sinais à Rússia que também me causam alguma preocupação, de uma certa tolerância para com o tipo de política externa de Vladimir Putin."

Mas se é óbvio que "Trump se está nas tintas para a Europa e a NATO", a América sobreviverá mesmo assim a um populista como presidente (hipótese que as sondagens recusam)? "Sim, o sistema sobreviverá a Trump. Mas, em quatro anos, não devemos subestimar os estragos que alguém que está no gabinete oval possa fazer. E esses estragos, em termos de reputação, em termos de prestígio, em termos de estabilidade da ordem internacional, são enormes. E recordo-lhe que não é só na política que Trump tem dito coisas extremamente preocupantes. Acho que foi há coisa de duas semanas que disse que equacionaria retirar os Estado Unidos da Organização Mundial do Comércio. Isso equivale a destruir essa organização e por conseguinte destruir a ordem comercial internacional. É um desastre."

Vasco Rato pede o segundo café. Dois, por favor. A esplanada de O Tachinho é agradável, com a sombra a atenuar o calor. Diga-se também que ninguém à mesa está de gravata. E a conversa prossegue com a FLAD como tema, fundação criada em 1985 e que hoje gere um património de 150 milhões de euros. "A FLAD resulta de um tratado entre Portugal e os Estados Unidos. E há uma dimensão de Estado que tem de ser respeitada", explica o presidente desde 2014, nomeado pelo então primeiro--ministro, Pedro Passos Coelho.

Neste mandato, que termina a 1 de janeiro de 2019, Vasco Rato tem insistido em reduzir os custos operacionais, de forma a libertar mais verbas para as atividades da fundação, que vão desde bolsas de estudo (obtive uma em 1999 quando fazia um mestrado em Estudos Americanos) até organizar colóquios, promover missões empresariais e fazer a ligação com os políticos luso-americanos e as comunidades. "O objetivo é contribuir para o desenvolvimento de Portugal através da promoção das relações entre os dois países", acrescenta Vasco Rato, que num esforço de racionalização das contas fez cortes nos salários da própria administração. Uma forma de minimizar os efeitos da crise, uma crise global, a cujo início assistiu nos Estados Unidos quando lá esteve a dar aulas, entre 2007 e 2009. "O mundo estava a mudar e ninguém percebia."

Foram duas horas de conversa, com a gastronomia pouco presente mas muita história no menu. Terminamos a falar sobre a Europa. Vasco Rato, que em média vai a cada dois meses aos Estados Unidos, admite irritar-se quando se fala de federalismo e se usa o modelo americano como hipótese. "As clivagens na Europa são tão profundas que o federalismo só iria acentuar essas clivagens. A construção europeia deve ser feita com respeito pela diferença. Não se deve impor o politicamente correto europeu", sublinha. Diz que os acontecimentos recentes lhe têm dado razão. "Acusavam-me de ser eurocético. Mas não sou contra a Europa, sou sim contra aqueles que de repente parecem querer substituir o novo homem soviético pelo novo homem europeu." E voltando a quem lhe chamou eurocético, relembra que regressou ao país em 1986, o ano da adesão, e sabe bem como a "entrada na Europa despertou Portugal".

Despedimo-nos. Vasco Rato está prestes a ir de férias. "Cáucaso", diz-me. O apaixonado por história tem viagem marcada com os filhos à Geórgia. Nos planos também Arménia e Azerbaijão. São os confins da Europa, muito longe da América, tão próximos da Rússia.

O Tachinho

› 1 prato de broa

› 1 manteiga

› 2 águas com gás

› 1 água tónica

› 2 bifinhos de peru

› 4 cafés

Total: 24,45 euros

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