Uma mulher do norte num mundo de estranhas criaturas
Na semana antes de nos encontrarmos num restaurante de Little Havana, onde combinámos jantar depois de mais um longo dia de trabalho e de uma passagem por casa para pôr o filho de 1 ano, Lucas, a dormir, Bárbara Bonfocchi Tomaras foi mais uma vez chamada a casa de uma senhora para atender o seu animal de estimação. Estava preocupada com a sua galinha, que ainda não estava plenamente recuperada dos problemas de saúde que obrigaram a sucessivas intervenções cirúrgicas, com custos que, apesar de Bárbara ser uma veterinária que pratica preços bem acessíveis, já somam mais de mil dólares.
"Isto é o que me entusiasma do trabalho que faço em Miami: há muita gente com animais exóticos em casa - e que nem sempre sabem lidar com eles; por vezes sou chamada para apanhar uma arara que se instalou na copa da árvore mais alta, por exemplo, e não quer voltar. Aqui é comum ver pessoas a jantar com macacos ao ombro e coisas do género, e o cuidado que se tem com os bichos é realmente extraordinário. É como se fossem pessoas."
Em Miami, onde vive mais 1 milhão de pessoas do que os 1,7 milhões que se fixam na Área Metropolitana do Porto mas cuja riqueza produzida todos os anos é mais de três vezes o PIB per capita da Invicta, cerca de 45 mil dólares, os animais têm um estatuto quase de luxo e a excentricidade é muitas vezes uma imagem de marca, Bárbara encontrou o sítio ideal para exercer. E é mesmo por isso que a sua decisão de um estágio de três meses tem vindo a consolidar-se, o prazo de regresso sucessivas vezes adiado, apesar de se manter como objetivo. "Aqui há poucos veterinários, por isso a profissão é mais respeitada e bem remunerada, temos uma posição muito boa. Já com licença ainda fiquei com ele. Anda mais na minha área: somos apenas cinco a ver exóticos no estado inteiro, e há imensos! Mas não estou mentalizada para ficar", apesar de se ter casado com um americano, fotógrafo profissional (que nos cedeu as fotos desta reportagem) de Chicago, já há cinco anos, e de ter dele um filho de 1.
A verdade é que Bárbara nunca pensou na forma como a sua vida se torceria para a trazer ao ponto em que está, a ponderar abrir finalmente a primeira clínica exclusivamente para animais exóticos. Tirou o curso de Veterinária em Portugal e foram os estágios cumpridos no último ano que lhe pregaram uma rasteira: esteve em Madrid, depois em Knoxville (Tennessee), e por último Miami, onde a irmã mais velha vive e onde ao fim dos três meses previstos foi convidada a prolongar a experiência. Acabou por ceder e foi ficando na clínica, tomando então a decisão de tirar o visto de trabalho especializado. "Esse processo demorou um ano e tal, mas eu para ficar sem ser como técnica tinha de ser graduada aqui, então fui tirar a licença, que é muitíssimo difícil e longa (são três anos e um investimento de 15 mil dólares). Foi horrível, mas valeu a pena." Sobretudo porque com essa licença tirada nos Estados Unidos pode-se trabalhar em qualquer parte do mundo.
Bárbara diz que teve a sorte de estar neste nicho, em que há oportunidades a aparecer a todo o momento, mas é o empenho e a capacidade de trabalho desta portuguesa de 35 anos que mais têm feito a diferença no seu percurso. Sobretudo desde há quatro anos, período em que começou a acumular o trabalho feito no South Dade Avian & Exotic Animal Medical Center, hospital para animais em que colabora - "sou a única ali a ver exóticos, faço as cirurgias, etc. e pago uma percentagem do que ganho à clínica" - com a sua Exoticare Veterinary Services. "No fundo, é uma house call practise, porque há muita gente a precisar de serviço ao domicílio, mas ainda não é muito eficiente, porque as casas onde tenho de me deslocar ficam longe umas das outras, acabo por perder muito mais tempo nessas viagens do que se tivesse a minha própria clínica, onde conseguiria ver muito mais bichos por dia." Hoje, neste sistema que lhe rouba boa parte das mais de dez horas diárias de trabalho (mais fins de semana intercalados), atende uns sete pacientes por dia, que podem ser araras ou porcos, guaxinins ou macacos, lémures ou cobras, cabras ou tartarugas. E diz que abrandou desde que o filho nasceu: "Eu era completamente workaholic, nem sei como o meu marido não me abandonou."
A verdade é que Bárbara faz o que mais gosta, é bem-sucedida e tem os seus planos para o futuro bem delineados. "Estou num mundo muito bom porque somos poucos e temos oportunidade de praticar um nível de medicina que está ao nível da dos humanos. Isso dá-me imenso gosto! E quando eu abrir a clínica serei a primeira só de exóticos." Assume, embora fosse fácil adivinhar pelo entusiasmo na mensagem, pelo brilho nos olhos sempre que o tema são os passos que ainda quer dar, pela pronúncia do Norte que se faz mais forte conforme as palavras lhe saem em catadupa, que é "super goal oriented". E explica que se quiser voltar para Portugal quando tiver a clínica montada, há cinco estudantes que estagiaram com ela e que de boa vontade lha comprariam. "Neste momento, com os clientes que já tenho aqui e a experiência acumulada, até era um crime não abrir, porque é uma oportunidade de mercado demasiado boa para perder. E quando Portugal se desenvolver neste capítulo eu já poderei contar com mais esta experiência."
O conflito entre as mil e uma oportunidades decorrentes de ficar ali e a vontade constante de voltar está permanentemente a medir-lhe as forças. Com duas meias-irmãs da parte do pai e filha única da mãe, tem "imensos primos e somos todos muito chegados". As raízes, as saudades, também dos amigos, mas sobretudo da mãe, apesar de passarem temporadas juntas, cá ou lá, a cada três meses, são fatores que pesam na sua vontade de regressar. "Nos primeiros anos, isto é uma excitação, mas depois começa a passar o tempo - estes nove anos passaram a correr -, as coisas são caras, muito caras, e eu quero que o meu filho aprenda português a sério..." Mas não há precipitação nos planos da veterinária, que garante que não quer ficar ali para toda a vida. "É claro que eu aqui recebo bem como não receberia em Portugal, mas não estou rica. Simplesmente tenho a oportunidade de fazer coisas na minha carreira que nunca me passou pela cabeça serem possíveis."
Depois há os terríveis costumes, como as poucas férias que não chegam para vir tantas vezes quanto queria, ou o facto de não haver licença de maternidade - ainda que ela tenha feito questão de a gozar -, ou o já bem conhecido sistema de saúde deficiente. "Eu tive a certa altura uma apendicite e quando vi a conta de 50 mil dólares chorei três dias - até receber resposta do meu seguro de emergência a dizer que estava coberta e aceitavam pagar. Agora, com o Lucas, pagamos mil dólares por mês em seguro de família - e se acontecer alguma coisa tenho de pagar uma franquia..."
Pergunto se já sentiu mudanças desde que Donald Trump assumiu a presidência. "Só a minha vontade de vomitar todos os dias. Nunca imaginei que tanta gente votasse nele." Bárbara preferia Bernie Sanders - se pudesse votar, o que não é ainda uma realidade já que tem de cumprir a última prova, o teste de cidadania. Tenho mesmo de o fazer, porque arrisco-me a que as coisas mudem entretanto." E deposita a sua esperança num mandato que continue a ser mais ou menos controlado, ainda que tema certos assuntos de segurança em que o presidente americano tem mesmo a última palavra - "e isso é assustador". Por enquanto, porém, mantém-se razoavelmente tranquila sempre que volta a casa, em Palmetto Bay, zona residencial no Sul de Miami onde vive com a nova família numa casa com imenso espaço - incluindo uma área exterior vedada e coberta onde tem uma espécie de varanda de periquitos. "E um cão", acrescenta, admitindo que para quem passa o dia a ver animais, isto é quanto baste.
E remata: "É claro que eu ganho bem, mas estou longe de estar rica, porque aqui ganha-se dinheiro mais rápido, com maior facilidade, mas é preciso ser mesmo excecional para ganhar mais de 10 mil dólares por mês - e só assim se consegue ter algum dinheiro extra, porque as despesas são inacreditáveis." Quanto a mim, pelo que vejo nela, estou convicta de que será uma questão de tempo até lá chegar. E Bárbara, uma força de trabalho e energia, tem a vantagem de estar no sítio certo para a sua profissão: uma cidade "inigualável em oportunidades, onde há sempre público a responder bem, mesmo que a ideia seja completamente louca".
Em Miami