Uma cidade real assombrada por um aeroporto fantasma
Para criar riqueza numa Castela-Mancha pobre, um grupo de empresários investiu num aeroporto e a classe política apoiou. Mas chegou a crise e os aviões desapareceram. Como diz um médico local, foi um "engaña-bobos". E nem PP nem PSOE podem rir-se um do outro
Por via rápida são uns 15 minutos entre Ciudad Real e o seu já célebre aeroporto. Mas a meio do caminho, quando surge a placa a apontar a saída da A41, desaparecem os carros e a estrada, embora de piso impecável, transforma-se num deserto. De repente, surge o moderno edifício do aeroporto, com a neblina matinal que o envolve a acentuar o aspeto fantasmagórico dado pela ausência total de movimento.
Ali não há táxis à espera de clientes, carros de família a deixar passageiros, ninguém a arrastar malas de viagem. O parque de estacionamento está vazio. E, sobretudo, não se veem aviões a aterrar ou descolar. A pista de 4100 metros (apta para todos os aviões comerciais) deixou de ter uso há três anos com a saída das low-cost, a não ser que se contabilize as acelerações de um McLaren, um Audi e um Ferrari durante as filmagens de um Top Gear da BBC que depois causou mal-estar pelo humor britânico sobre um aeroporto que custou mais de mil milhões de euros e agora está em saldos.
Ninguém queria virar as costas a um projeto que prometia muitos postos de trabalho
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
"Naquele momento, com a bolha imobiliária, pensava-se muito pouco. Porque tudo se resolvia. E nenhum político se opôs. Ninguém queria virar as costas a um projeto que prometia muitos postos de trabalho", explica Pilar Zamora, alcaldesa de Ciudad Real, o equivalente a presidente de Câmara. Eleita em maio, a socialista acredita, porém, que o aeroporto que já se chamou D. Quixote, depois Madrid Sul e agora é simplesmente de Ciudad Real, ainda venha a ser utilizado, sobretudo para mercadorias, "afinal estamos no centro de Espanha, num eixo de comunicações". Falta encontrar um investidor, com um juiz a decidir há dias que o processo de venda terá de ser reiniciado, o que deita por terra a oferta de um grupo chinês de dez mil euros que tinha indignado toda a Castela-Mancha.
Que se saiba, não houve corrupção neste caso do aeroporto fantasma. Só má planificação e a ambição de uma terra pobre de criar riqueza. "Foi um projeto empresarial privado. Uma obra megalómana que pretendia ser o primeiro aeroporto privado de Espanha e que toda a classe política apoiou", explica Belén Rodríguez, do jornal Lanza. "Correu tudo mal. Primeiro foram os problemas com os ambientalistas, por causa de umas aves, depois a polémica com o nome Madrid--Sul, depois o aeroporto de Barajas, em Madrid, foi mesmo ampliado e como se não bastasse ainda chegou a crise", acrescenta a jornalista.
Quase do tamanho de Portugal mas com apenas dois milhões de habitantes, Castela-Mancha é uma vasta região plana entre Madrid e a Andaluzia. Na época medieval foi fronteira entre cristãos e mouros e depois, a partir do século XVII, tornou-se famosa como a terra de D. Quixote, o cavaleiro da triste figura criado por Miguel de Cervantes. Hoje, o problema da região é o desemprego, que em Ciudad Real se revela de forma crua na mendicidade que se vê na zona histórica.
O desemprego é muito alto aqui. São sete mil desempregados em 76 mil habitantes. É algo que me tira o sono todas as noites
"O desemprego é muito alto aqui. São sete mil desempregados em 76 mil habitantes. É algo que me tira o sono todas as noites", admite Pilar Zamora, que foi eleita graças ao apoio dos vereadores do Ganemos, uma coligação de esquerda com que os comunistas locais tentaram contrariar a ascensão do Podemos.
Acabou assim um longo período de domínio do PP em Ciudad Real, quase em simultâneo também com a perda de poder dos conservadores no governo regional manchego, derrotados pelo PSOE com o apoio do Podemos apesar de terem sido a força mais votada.
No seu gabinete no edifício do ayuntamiento, neogótico e construído em 1976 mas bem integrado no coração de uma cidade fundada no século XIII por Afonso, o Sábio, a autarca socialista não tem ilusões sobre aquilo que um político pode ou não pode fazer. "Temos de arar a terra. Mas são os empresários que põem as sementes. Esta é uma cidade de pouca indústria e por isso difícil de se criar emprego. Lamento que o talento que estamos a criar na universidade o leve todas as manhãs o AVE para Madrid", diz, comentando o grande número de habitantes que usa o comboio de alta velocidade para ir trabalhar na capital espanhola, apesar de esta ficar a quase 200 quilómetros da cidade.
Um abismo entre PSOE e PP
Sobre as eleições nacionais deste domingo, Pilar Zamora está confiante de que o PSOE ganhará mas admite uma coligação com o Podemos, o novo fenómeno da esquerda: "a minha experiência é que uma coligação dá voz a mais cidadãos e pode ajudar à mudança de que precisamos neste país." Sobre um resultado tão repartido que possa necessitar da aliança inédita entre socialistas e conservadores, a autarca sublinha que não pode falar pelo partido mas que "como militante do PSOE não entenderia uma coligação com o PP. Nós defendemos a saúde pública, eles querem privatizá-la. Nós queremos a escola pública, eles não. Há todo um abismo na forma de entender a política".
Em relação ao Ciudadanos, que nas municipais só teve 4% em Ciudad Real mas a nível nacional surge com perto de 20% nas sondagens, Pilar Zamora descreve-os como quem "recolhe os votos dos desencantados do PP mas continua a ser uma direita, mesmo que não o tenha ainda demonstrado".
Já a jornalista Belén Rodríguez confessa ter "muito mais dificuldade em entender o fenómeno Ciudadanos, vindo da Catalunha, do que o Podemos, que nasce da crise".
Prestes a entrar na carrinha com que faz o reabastecimento de máquinas de comida, estacionada perto do hospital, Juan Angel declara-se satisfeito com a mudança de cor política na cidade e espera que o país também mude no domingo. "Nunca estive desempregado, graças a Deus, mas tenho familiares e amigos sem trabalho. A crise continua", diz o jovem de 25 anos, relativizando os 3% de crescimento do PIB que servem de argumentos a Rajoy de que o pior já passou.
As pessoas querem mudança. Estão muito queimadas com os políticos, por isso isto do Podemos e do Ciudadanos
Sentado numa esplanada da Plaza Mayor, Javier Sánchez de la Nieta comenta que ainda não percebeu grandes mudanças com a nova alcaldesa, tirando uma polémica com um subsídio às touradas, que os comunistas terão convencido a autarca a retirar e que no Lanza foi notícia. Confessando-se tradicional votante do PP, de Mariano Rajoy, este médico de 65 anos não tem dúvidas em atribuir as culpas da crise espanhola ao antigo governo do socialista Rodríguez Zapatero mas mesmo assim não sabe se o PP vai voltar a ganhar. "Há muita incerteza. As pessoas querem mudança. Estão muito queimadas com os políticos, por isso isto do Podemos e do Ciudadanos", conta o médico, já reformado, enquanto puxa de um cigarro Marlboro e ajeita as golas do casaco para se proteger melhor do frio que é já muito nestas terras da meseta ibérica e que ajuda ao sucesso dos vendedores de castanhas e da pista de gelo montada na Plaza de la Constitución.
E, já agora, o que pensa o médico manchego conservador sobre o aeroporto, inaugurado em 2008 e que depois do fim de alguns voos da Vueling e da Ryanair (além dos de mercadorias) está fechado desde 2012? "Foi um engaña-bobos."
* em Ciudad Real
Leia amanhã
Málaga vive muito do turismo, que aumentou ao nível dos cruzeiros, com a instabilidade do outro lado do Mediterrâneo. A cidade aposta na cultura. Não quer ser só sol e praia.