Um canal de mulheres e para mulheres no país dos talibãs
O regime talibã caiu em 2001. Para trás ficaram seis anos de retrocesso civilizacional durante os quais as decapitações e outras penas sádicas eram o único espetáculo público. As mulheres saíram da esfera pública, fora das escolas ou dos empregos. Na rua, só de burca, e acompanhadas por um familiar. O fundamentalismo islâmico foi derrotado militarmente, mas os talibãs não desapareceram. Pelo contrário, hoje estarão presentes em 70% deste país asiático. Além da ameaça jihadista, que hoje se estende à presença do Estado Islâmico, a sociedade afegã - conservadora e iletrada - não é o território mais propício para a emancipação das mulheres. Contra todas as expectativas nasceu um canal televisivo feito por mulheres e para mulheres que emite durante 24 horas.
Os temas que o canal trata estão longe de ser cor-de-rosa. Num país em que só um terço do sexo feminino vai à escola, o papel educativo é central. Os casamentos forçados, os casamentos de adultos com crianças, ou a violência doméstica são discutidos, tal como o papel da mulher na economia ou na política. "E tentamos focar-nos também em assuntos positivos. A situação da segurança deixa para segundo plano os avanços das mulheres no Afeganistão. Nestes 17 anos, os media tornaram-se numa ferramenta bastante forte e além disso as mulheres passaram a fazer outras coisas. Há mulheres nas forças de segurança, na força aérea, contribuem para a economia. Isso deve ser celebrado." Quem o diz é Setara Hassan, o rosto do canal Zan TV.
Um rosto que não raro está sem lenço - uma afirmação pela libertação da mulher que também passa pelos códigos de vestuário. A diretora executiva da estação de TV é a exceção. As restantes profissionais cobrem o cabelo com o lenço. Ainda assim, um gesto de coragem. As ameaças são constantes. Há uns meses um "clérigo muito famoso escreveu no Facebook que "estas mulheres seminuas deviam ser decapitadas, não seria contra o islão"." Sendo que a definição de seminua é ter uma parte do cabelo à mostra, porque usam lenço em todos os programas. "É muito perturbador", reconhece, numa entrevista à BBC4.
Nada que o fundador do canal não esperasse. "Criar um canal de televisão para as mulheres, gerido por mulheres é definitivamente um desafio e arriscado", disse Hamid Samar aquando do arranque do projeto à agência Xinhua. O empresário investiu cerca de 200 mil euros e empregou 74 pessoas, entre as quais 16 homens (em especial para as funções técnicas). Jornalistas e apresentadoras são um exclusivo feminino.
Ser jornalista é uma profissão de risco acrescido no Afeganistão. A abertura da sociedade traduziu-se num boom dos meios de comunicação e algumas centenas de mulheres foram trabalhar, nas mais diversas áreas, para os media. Mas ao longo deste século seis foram assassinadas pelo facto de saírem de casa e irem trabalhar.
Segundo o Centro de Proteção de Mulheres Jornalistas Afegãs, há pelo menos 1037 mulheres a trabalhar na comunicação social. Deste número, 474 são jornalistas profissionais. A maior parte desenvolve a sua atividade em canais televisivos em Cabul. Em várias províncias, a presença de jornalistas escasseia e mulheres jornalistas não existem.
Os pais de Setara saíram do país nos anos 90. Primeiro para o Paquistão, depois para a Dinamarca, onde cresceu. Mas muito antes de se formar em economia e política em Copenhaga já a desigualdade a inquietava. "Quando era pequena notei que havia uma diferença enorme na forma como as mulheres eram tratadas. Eram cidadãs de segunda classe." Pior era ver as mulheres aceitarem esse tratamento. Por isso, quando regressou pela primeira vez ao Afeganistão, em 2013, sentiu-se tocada com as histórias de quem enfrentou a opressão cultural e religiosa. "Eram muito corajosas e inspiradoras. Senti que com um pouco de encorajamento e aconselhamento podiam elas próprias capacitar-se. Pensei que neste cargo podia fazê-lo e ajudá-las." O objetivo não é modesto: "Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e crianças."