UE prepara-se para Brexit sem acordo e Londres em tribunal
Lei do mercado interno, que tem de passar pelos Lordes, é mais um fator de divisão entre Bruxelas e o governo de Boris Johnson, quando se contam os dias para se poder chegar a acordo quanto à relação futura.
O processo de infração instaurado nesta quinta-feira pela Comissão Europeia, se o Reino Unido não recuar, deverá chegar ao Tribunal de Justiça da União Europeia (UE), que poderá impor grandes multas a Londres.
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É um cenário que muitos consideram distante, mas também em 2015 poucos acreditariam que o Reino Unido saísse da União Europeia. Há quem ponha água na fervura e diga que este passo é meramente "uma necessária medida administrativa", como comentou o primeiro-ministro holandês Mark Rutte. O que não deixa de ser um facto: muitos Estados-membros enfrentam dezenas de processos por contravenção às leis da UE. Segundo a AFP, esta é a 94.ª ação contra o Reino Unido.
Por outro lado, a controversa Lei do Mercado Interno de Johnson, criticado por todos os anteriores chefes de governo britânicos, foi aprovada pela Câmara dos Comuns após várias emendas na especialidade, mas ainda tem de passar pelo crivo da Câmara dos Lordes, onde os conservadores não estão em maioria.
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A baronesa Helena Kennedy, trabalhista, acusou o governo britânico de "rasgar" a lei após a aprovação da Lei do Mercado Interno e previu uma medida rara, a rejeição da legislação. Para Kennedy, os Lordes vão estar perante uma "flagrante violação do direito internacional". Em declarações à BBC escocesa, Helena Kennedy acusou o governo de Boris Johnson de "trumpismo", e de ser composto por "adolescentes que não gostam da lei e que estão preparados para a subverter no seu próprio interesse".
O projeto de lei aprovado com 340 votos a favor e 256 contra permite ao Reino Unido "não aplicar" regras acordadas sobre quais as mercadorias que devem ser sujeitas a controlos alfandegários, e por outro lado estabelecer as suas próprias regras para a ajuda estatal à Irlanda do Norte, possivelmente minando a exigência da UE de condições de concorrência equitativa entre os parceiros comerciais.
Um porta-voz do número 10 de Downing Street descreveu o projeto de lei como necessário para assegurar o comércio sem entraves no Reino Unido. "Expusemos claramente as nossas razões para introduzir as medidas relacionadas com o protocolo da Irlanda do Norte", disse o porta-voz. "Precisamos de criar uma rede de segurança jurídica para proteger a integridade do mercado interno do Reino Unido, assegurar que os ministros possam sempre cumprir as suas obrigações para com a Irlanda do Norte e proteger os ganhos do processo de paz."
Este processo de infração, ao contrário de dezenas de outros, reveste-se de uma gravidade que o torna único: o Reino Unido está prestes a violar o acordo de retirada assinado há um ano com a UE e que está em vigor, e pondo em perigo o acordo de paz na Irlanda.
Em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que a legislação aprovada na Câmara dos Comuns está em "total contradição" com a garantia anterior do Reino Unido de evitar uma fronteira terrestre na ilha da Irlanda.
Von der Leyen disse que a Comissão Europeia decidiu iniciar os procedimentos legais depois de o governo britânico ter ignorado um pedido da UE de abandonar o projeto de lei até ao final de setembro.
"Não podia ter outra resposta", declarou o eurodeputado Pedro Silva Pereira, que foi nesta quinta-feira nomeado relator do Parlamento para o Acordo de Saída. "É uma violação grosseira do princípio da boa-fé e do direito internacional", afirmou o parlamentar socialista.
O artigo 5.º do Acordo de Saída prevê que ambas as partes tomem todas as medidas para garantir a execução das obrigações decorrentes do documento e que se abstenham de tomar qualquer medida que possa afetar a realização desses objetivos. Ambos estão vinculados pela obrigação de cooperar de boa-fé no cumprimento do acordo.
A UE enviou uma "carta de notificação formal", que poderá levar a um moroso confronto legal no Tribunal de Justiça da União Europeia - e tendo em conta que alguns ministros do governo de Boris Johnson admitiram a ilegalidade, o Reino Unido arrisca-se a pesadas multas.
O Reino Unido tem um mês para se justificar. "Responderemos à carta na devida altura", disse um porta-voz do governo britânico.
Negociações na última ronda
Enquanto isso, os dois lados vão continuar a tentar fazer um acordo de divórcio sobre o comércio, viagens e relações futuras.
Os negociadores da UE e do Reino Unido Michel Barnier e David Frost estão reunidos em Bruxelas nesta semana para a sua última ronda de conversações sobre um acordo comercial pós-Brexit. Os diplomatas dizem que estas conversações não serão perturbadas pela ação legal, mas a posição de Londres lançou mais dúvidas sobre as negociações antes de uma cimeira planeada da UE a 15 de outubro.

Negociações entre Bruxelas e Londres, com o comissário Maros Sefcovic (esq.), o ministro Michael Gove (dir.) e o negociador-chefe Michel Barnier (no ecrã).
© EPA/JOHN THYS
Se não houver acordo até ao final de outubro, os funcionários europeus advertem que é difícil ver como poderia ser ratificado até ao final do ano, o que significa que o Reino Unido deixaria o mercado único sem um acordo comercial.
Isto iria acentuar o que já se espera ser o choque económico do Brexit, mais a mais com as consequências da pandemia: tarifas aplicadas segundo as regras da Organização Mundial do Comércio e a perspetiva de uma disputa sobre direitos pesqueiros.
Johnson prometeu que o Reino Unido sairá da UE com ou sem um acordo quando um período de transição expirar no final do ano.
Em Bruxelas especula-se sobre se de facto o governo britânico quer um acordo. Alguns diplomatas europeus também dizem que quebrar um acordo não é forma de lançar as bases para um segundo acordo.
Quando Johnson assinou o protocolo da Irlanda do Norte há um ano, saudou-o como um avanço, para mais tarde dizer que era um documento precipitado que precisava de uma emenda substancial.
O desafio tem sido como manter uma fronteira invisível entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, a sul. A eliminação da fronteira foi uma parte fundamental do Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998, fundamental para pôr fim a três décadas de violência sectária entre protestantes pró-britânicos e católicos pró-irlandeses.
A solução pós-Brexit, ao abrigo do protocolo, era que a Irlanda do Norte continuaria a aplicar as regras europeias sobre direitos aduaneiros e normas sanitárias e de produtos, tornando desnecessária uma fronteira entre o norte e o sul da ilha.