"Toma a minha mão, dá-me a tua". Ser voluntária num abrigo de refugiados ilegal
Nos últimos dias, o novo primeiro-ministro grego Kyriakos Mitsotakis, da Nova Democracia, apertou o cerco sobre o bairro de Exárchia, um lugar de cultura alternativa no centro de Atenas. A ação tem levado ao despejo de vários edifícios ocupados por refugiados. Já na campanha eleitoral o partido tinha deixado claro que restabelecer a "ordem" seria uma das prioridades. Na segunda-feira, uma ação policial de grande escala culminou com a expulsão de 143 refugiados e três detenções. Se continuarem, hão de deixar mais mil refugiados na rua.
Dos 143 refugiados já despejados, 133 serão transferidos para campos oficiais, e os restantes dez deportados, já que não têm documentação. Os campos das ilhas gregas como Lesbos, Samos e Chios, que pela proximidade à costa turca recebem o maior número de refugiados, estão já sobrelotados. E é por isso que muitos se dirigem à capital, para ficarem nestes abrigos que, embora ilegais, sempre contaram com o "fechar de olhos" das autoridades, até agora. Se não os deixassem permanecer ali, sabiam que acabariam nas ruas de Atenas, já bastante sacrificadas com a crise.
A maior parte dos refugiados que se encontram na Grécia continuam à espera - é verdade que, segundo os Acordos de Dublin, devem pedir asilo no primeiro país em que são recebidos. Mas os que chegam a Atenas ou Salónica tentam evitar que os procedimentos legais se iniciem na Grécia: onde estão perante um futuro duvidoso e poucas oportunidades - a insuficiência das iniciativas de integração.
Foi também por isso que, a partir de 2016, edifícios abandonados no centro de Atenas começaram a ser ocupados por refugiados. Eram antes antigas escolas e hotéis, e era suposto albergarem refugiados como solução temporária. No bairro de Exárchia havia, até esta semana, 24 casas ocupadas, com milhares de refugiados - sem qualquer uniformidade quanto às suas situações legais. E talvez não fosse por acaso: este bairro é o núcleo do movimento anarquista ateniense desde os anos 70. Aqui, "liberdade" e "diversidade" são palavras de ordem. Nas paredes grafitadas dos edifícios apela-se ao humanismo e critica-se a ação política - ou a sua ausência. Dá-se voz às minorias, fala-se dos pobres e dos sem-abrigo. Aqui luta-se pela abertura das fronteiras europeias e a livre circulação dos refugiados. E também por isso este bairro os acolheu, mesmo correndo riscos.
Quem percorre Atenas, as ruas de Panepistimio, no centro, edifícios imponentes, montras requintadas, está longe de imaginar a realidade a uma distância de cinco minutos a pé. Eu própria vivi dez meses em Atenas - durante um Erasmus do curso de Jornalismo na Faculdade de Economia e Ciências Políticas - sem ter visto nada. E só ao fim do sexto mês é que a verdade me tocou.
Foi através de uma amiga que ouvi falar de um grupo de voluntários de diferentes países que se encontravam a viver em Atenas. Unia-os um projeto informal junto dos refugiados num edifício ocupado por mais de 200. Foi-me explicado o mínimo: o foco eram crianças - a maior parte sem educação, com pouco contacto com o exterior - e eram precisos mais voluntários. Pouco ou nada sabia sobre estes "abrigos ilegais" no centro de Atenas. Só perguntei a data da próxima reunião.
A primeira vez que passei o portão do abrigo ilegal foi a 26 de abril. As janelas estavam tapadas com lençóis a servirem de persianas. Havia um urso de peluche pendurado numa delas. Subi as escadas e dei com sorrisos e apertos de mãos dos que me recebiam. Tantas vezes me receberam, sempre o mesmo sorriso. Acompanhava-me a Lucie, uma das voluntárias que gerem o projeto, e eu seguia os seus passos para desbravar terreno às cegas. Hoje sei que chamá-los voluntários é ser simplista: são ativistas com fortes convicções políticas, gente que voou para Atenas com o propósito específico de trabalhar nesta causa.
Assim que descemos ao pátio, os miúdos correram para nós. Diziam "toma a minha mão e dá-me a tua". Abraçavam a Lucie como quem o faz com a família - ela estava com eles desde janeiro. Mas aquele era só o meu primeiro dia e abraçavam-me a mim também. Mais tarde pude perceber o peso que carregam estes abraços. Não são sinónimo de gratidão, ou reconhecimento pelo projeto. Pelo contrário, revelam a falta. De afeto. De estrutura. De estabilidade.
Quando nos tornamos voluntários, aconselham-nos a manter a distância. Chegamos já a saber que partiremos, ainda que com data incerta. Dizem-nos que construir uma barreira à nossa volta, onde sejamos capazes de colocar sentimentos e emoções, é a única forma de nos mantermos sãos. De podermos abalar inteiros. Não demorei muito tempo a perceber a dinâmica do projeto. Tinham um documento com orientações gerais: a posição que devia assumir, comportamentos a evitar, o deixar de parte os moralismos e trazer a tolerância. O 14.º ponto enfatizava que devíamos procurar estabelecer uma relação profissional. Por mais recomendações que pudesse ter lido, trabalhar com seres humanos envolve sempre intuição, improviso e um olhar policromático. Envolve corações.
Fui a nova professora para as aulas de Arte. As paredes da sala estavam pintadas com flores e pássaros e barcos de papel. Nas mesas e cadeiras, marcas do tempo. Num cartaz: "Lutar não é correto, meu amigo!" Aqui as brincadeiras incluem contacto físico e acabam por vezes em pancadaria. Ao mesmo tempo e na mesma sala há miúdos de 2 anos e de 17 - embora os mais velhos apareçam com menos frequência.
Para além de Arte, há ainda aulas de Inglês e de Matemática, e incentivo à prática desportiva. Às segundas, terças e quartas, as manhãs são de trabalho. Da parte da tarde, há pintura, jogos de tabuleiro, skate ou futebol num parque infantil próximo. E é assim que se procura o equilíbrio entre trabalho e diversão. As sextas-feiras são talvez os dias mais especiais. Ao fim do dia, é a "hora do chá". Os pais vêm à sala e acomodam-se num espaço que é apertado. Partilhamos café, leite e thai (bebida tailandesa, feita a partir de chá, leite e açúcar). Partilhamos histórias e risos, ou preocupações e afazeres.
O projeto que surgiu em agosto do ano passado, das vontades de duas ativistas, é hoje muito diferente. No entanto, desde o começo que o propósito é proporcionar uma base educacional não formal. Das 50 crianças que vivem no abrigo, apenas dez estão inscritas no ensino grego. Há um ano, a situação era ainda pior. Se a legislação grega prevê a educação obrigatória e gratuita para todas as crianças entre os 5 e os 15 anos, incluindo as requerentes de asilo (artigo 40.º, Lei 2910/2001), a situação atual em muito se desvia disso. Não é só nas ilhas que as crianças são privadas de educação. É aqui também. Esperam meses por papeladas e burocracias. As dificuldades do processo amedrontam os pais, que recuam, ao acreditarem na precariedade da estada. Na sequência da crise económica, fecharam-se inúmeras escolas e sobrelotaram-se as restantes. Se a situação é crítica para as crianças de "cá", pouco espaço sobra para as de "fora".
Aisha, de 9 anos, afegã era uma das meninas fora da escola. Perguntava-me se gostava de Atenas, enquanto se lhe enchiam os olhos de desdém. Respondi-lhe que sim e retribui a questão. "Eu gosto do meu país", disse-me. Numa primeira fase deste projeto, foi preciso trabalhar na confiança e não foi fácil. Num "abrigo ilegal", há poucos grupos autorizados. Não é fácil provar que vimos sem segundas intenções a quem carrega um passado tão marcado por dissabores.
Antes de qualquer coisa, ensinam-se as bases a crianças que já não se lembram de ir à escola. Para trabalhar, há que arrumar a secretária antes. Para apreender o que se aprende, é preciso concentração e um compromisso contínuo.
Hoje, os eixos de ação são mais amplos. As aulas de inglês estenderam-se também aos pais, pela evidente necessidade. Há voluntários responsáveis pela marcação e o acompanhamento dos moradores aos serviços de saúde, fora do abrigo.
Na antiga escola moram hoje cerca de 200 pessoas. Quando foi ocupada, em 2016, era a casa de mais de 300. É um edifício auto-organizado e fazem-se turnos entre a comunidade para garantir a "segurança" na entrada. Dos vários residentes, há dois elementos que são os primeiros responsáveis pelo bom funcionamento do edifício e questões administrativas. Quando falha a luz ou a água, os moradores recorrem a mais cinco ou seis indivíduos que procuram remediar a situação. No conjunto, a comunidade organiza-se numa assembleia, na qual e em teoria todas as vozes são ouvidas.
As antigas salas de aula funcionam como quartos e, em cada uma, dormem duas ou três famílias. Montam paredes divisórias com tecidos e vão improvisando a privacidade. As condições de higiene são, também elas, um improviso. Há três casas de banho no abrigo, das quais se servem homens, mulheres, crianças e bebés.
A alimentação baseia-se nos donativos que são entregues todas as quintas-feiras e armazenados. A distribuição pelas famílias acontece diariamente. Há quem tenha alguma independência financeira: quem guarde poupanças e quem, já tendo reconhecimento como requerente de asilo, receba 150 euros mensais, concedidos pela ESTIA - programa de ajuda de emergência para a integração financiado pela UE.
A maior parte é de nacionalidade afegã. Mas há também famílias curdas do Iraque, Irão e Síria e uma restrita minoria do Paquistão. Na sala de aula comunicamos em inglês. A maioria das crianças fala a língua persa, farsi. O entrave da língua é propício à marginalização. Atitudes racistas são uma constante e revelam-se cedo. Este prédio abriga uma comunidade gerada na necessidade, nas circunstâncias. O tempo e a convivência vão demolindo barreiras, mas é um trabalho moroso e delicado.
No meu primeiro dia conheci uma família paquistanesa com seis filhos que vivia no abrigo há mais de um ano. Enquanto a maior parte das crianças recriavam desenhos de um livro de pintura, a filha mais velha praticava urdu, com a ajuda da mãe. Quando se apercebeu de que eu a observava, desabafou como era difícil. Dei-lhe um pedaço de papel com o meu nome para reescrevê-lo em alfabeto urdu. Franziu o sobrolho e chamou a mãe. Fiquei a assistir ao empenho de ambas, enquanto tentavam a tradução do meu nome como quem resolve um enigma. Nunca cheguei a saber escrever o meu nome em urdu. Mas sei ao que lhes soube o jantar naquele dia, porque o partilharam comigo - vegetais temperados à maneira da cozinha indiana, que uma das filhas mais novas me veio entregar, a mando da mãe.
Se a maior parte dos residentes do abrigo são muçulmanos, a religião é elo de ligação. E festejá-la é como voltar a casa. Talvez por isso nos tenham pedido ajuda para organizar uma pequena festa, terminado o período do Ramadão. No dia 7 de junho, celebrámos o Eid, que assinala o fim do jejum. Nessa sexta-feira, a hora do chá contava também com baclava (sobremesa do Médio Oriente e dos Balcãs), biscoitos variados e sumos. Os miúdos atropelavam-se à volta da mesa e anulavam qualquer tentativa ingénua de formar uma fila.
Ao pôr-do-sol, no pátio exterior, dançámos ao som de músicas tradicionais persas, melodias que já me soavam familiares. E, se os verdadeiros protagonistas eram os artistas de palmo e meio, pais e voluntários sentavam-se em cadeiras e no chão, ao seu redor. E dançámos e cantámos e rimos, até à hora de arrumar tudo. Todos não. Mariam, de 16 anos, não teve a autorização do pai para sair do "quarto" e descer ao pátio, ao contrário dos irmãos mais novos. No início da tarde, tinha vindo falar comigo, pedindo-me que embrulhasse um pedaço de bolo num guardanapo e o fizesse chegar através dos irmãos. Sem compreender, perguntei porque não viria mais tarde. Respondeu-me só que "era a sua cultura". Não me alonguei, aprendi que há coisas que não se questionam. Ainda que sintamos o coração a querer saber.
A meio do verão, Atenas ferve. O calor traz mudanças. Entre voluntários, comentamos que faz tempo que não vemos a Adena ou o Samir. E dói, às segundas-feiras, quando nos apercebemos de que houve mais uma família a partir. É um misto de alívio e angústia. Mas não são eles os únicos a partir. Chega o verão, partem os voluntários. E, a cada partida, enfraquece-se quem fica. E os miúdos, perspicazes, pressentem-no. Querem mais. Aconteceu quando partiu a professora improvisada de Matemática: queriam quem lhes corrigisse as tarefas que levavam para resolver nos "quartos" e que, depois de concluídas, exibiam orgulhosos. Até à chegada de um novo professor, quebra-se o ritmo, outra vez.
Há dias em que o suposto "carácter transitório" da situação de refugiado cansa. Para estas famílias, para quem fugir é a única opção, que tiveram de deixar vidas e famílias para trás, empregos, casas e carros, os lugares onde tinham um nome. Procuram agora novos nomes, lutam por novas identidades, ainda que sejam tratados como farinha do mesmo saco. São os "refugiados". Aqueles que, mais por pena, fazem que fiquemos a debater-nos com questões éticas, ao invés de procurarmos soluções práticas.
O que se aprende sendo voluntário é que eles têm nomes. Que não são só refugiados. Que ainda carregam consigo projetos de vida e precisam de ações concretas, para que, do zero, possam recomeçar. Há sempre alguma coisa a fazer quando ainda não está tudo feito. Nem que seja mudar a narrativa. Inevitavelmente, somos donos de uma visão ocidental. E o nosso dó pouco resolve. O nosso dó até pode desumanizar. É certo que, educada pelos media e num abrigo ilegal, encontrei aquilo que esperava: instabilidade emocional, carências afetivas, dificuldades de aprendizagem. E mais a falta de higiene, condições de vida que deixam a desejar. Mas encontrei também resiliência entre a revolta. Astúcia, lucidez e perspicácia. Dignidade. Tentei, também, despi-los de estereótipos e preconceitos. Calcei-lhes os sapatos da esperança - tinham as solas gastas, mas ainda estavam bons para andar. Haja caminho.
* Estudante de jornalismo