"Temos de travar a violência no lar, acabar com o assédio e equiparar os salários"

Graças à intervenção do embaixador Germán Guerrero, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, aceitou dar esta entrevista por escrito ao DN em vésperas da chegada a Lisboa.
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Filha de um general que fez parte do governo de Salvador Allende até ao golpe de Augusto Pinochet em 1973 e morreu na prisão, a médica Michelle Bachelet é uma grande figura da democracia chilena e pela segunda vez presidente da República, depois de ter liderado a ONU Mulheres. Chega na quarta-feira a Portugal e ficará até sexta em visita oficial.

A transição do Chile para a democracia no final dos anos 1980 foi um exemplo para a América Latina, continente com ditadores de direita e de esquerda?

A transição chilena foi exemplar porque se fez a partir de um movimento pela democracia maioritariamente pacífico, no qual forças políticas e sociais subordinaram os seus interesses particulares para chegar a um objetivo comum: acabar com a ditadura. As organizações sociais - em especial de direitos humanos, trabalhadores e estudantes - e as distintas forças políticas que lutaram para recuperar a democracia organizaram grandes protestos que obrigaram o regime militar, que controlava o país, a fazer concessões e a abrir caminho à vontade popular. Tiveram a visão de não se deixar amedrontar nem cair em provocações que podiam significar um retrocesso ao objetivo da maioria dos cidadãos. Isto, independentemente de ter havido centenas de vítimas da repressão, que se somaram aos milhares de vítimas das violações dos direitos humanos. De certeza que a via pacífica evitou que o drama fosse maior. E, apesar de as operações que se fizeram para conseguir a mudança terem significado que durante muito tempo persistiram enclaves autoritários, fomos capazes de avançar até uma democracia plena e, em especial, na procura da justiça frente às atrocidades cometidas.

Como se explica o sucesso do Chile na construção não só de uma sociedade democrática mas também de uma sociedade desenvolvida, a mais próspera da América Latina?

Nos governos que se seguiram à ditadura propusemos avançar para uma sociedade democrática de direitos. Consideramos a economia de livre mercado como um instrumento para socializar os frutos do desenvolvimento, de maneira a conseguir o crescimento com equidade, e não como um fim em si mesmo. Realizamos uma política fiscal responsável e destinada a aumentar as possibilidades das pessoas, gerando emprego e ajudando as famílias a melhorar a sua qualidade de vida. Subscrevemos acordos comerciais com economias de todo o planeta, o que nos permitiu aumentar significativamente o comércio dos nossos bens e serviços e criar empregos. Hoje, trabalhamos de forma cooperativa com a comunidade internacional, a partir da nossa estratégia de convergência na diversidade. Todos os nossos avanços são fruto do construído desde o regresso à democracia, em matéria de institucionalidade democrática, sólidas políticas fiscais, Estado de direito e uma política externa que dá prioridade à região e às instâncias multilaterais.

É presidente pela segunda vez. Na sua opinião, o país mudou muito ou mudou mais a senhora, ao ter mais experiência como governante?

Sem dúvida que o país não é o mesmo que governei entre 2006 e 2010. O mundo mudou e fê-lo de maneira muito drástica. Houve uma forte crise económica, cujos efeitos ainda persistem, que atingiu duramente todas as nações. Além disso, cresceu de forma muito explosiva uma forte desconfiança nas instituições e em quem as dirige, assim como um profundo mal-estar pelo modo como se enfrentam os problemas e o tempo que demoram as soluções. A cidadania é mais exigente e menos tolerante frente aos erros ou ações questionáveis. Perante esta situação, temos resistido às dificuldades económicas com uma política fiscal responsável, apesar de termos empreendido um conjunto de profundas mudanças para enfrentar os novos desafios do país. É por isso que neste período fizemos uma reforma tributária de modo a que quem tem mais rendimentos pague mais impostos, para financiar programas sociais; uma reforma educacional, que será a chave que nos permitirá ter um país mais igualitário; diversas iniciativas de identidade de género, para evitar discriminações; mudanças nas regras do jogo na política e nos negócios, de forma a que estes âmbitos se desenvolvam com o máximo de transparência e probidade; e uma reforma constitucional, para que a nossa Constituição seja a casa de todos. Tudo com persistência, apesar de o nosso país ter sofrido a devastação de diversos desastres naturais, como terramotos, tsunamis, deslizamentos de terras, inundações, erupções vulcânicas e incêndios florestais. Independentemente das dificuldades, entreguei-me por inteiro à tarefa de governar, pondo todo o meu empenho e experiência para conseguir atingir os objetivos que tínhamos traçado, que temos a certeza de que permitirão ao país dar um salto para o desenvolvimento.

Tem havido muitas mulheres em postos de alto nível na América Latina. É um reflexo de uma mudança para a igualdade geral da sociedade, que antes era católica e conservadora?

Sem dúvida que a chegada de mulheres a altos cargos públicos mostrou, em primeiro lugar, que não há razão alguma para a existência de lugares vedados para nós e, por outro, que é necessário continuar a avançar mais decisivamente em matéria de igualdade de género. Sublinhei, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, que até há muito pouco tempo a história das mulheres esteve cheia de deveres e muito poucos direitos. Avançamos, mas sabemos que ainda falta muito para fazer antes de podermos dizer que atingimos a igualdade plena. A nosso ver, é preciso mudar esta realidade, acabar com a sobrecarga de trabalho, a discriminação, os estereótipos, a injustiça. E temos de fazê-lo rapidamente, porque não podemos esperar outros 70 ou 80 anos para que as coisas comecem a ser mais equitativas. Temos de ser mais decididos em travar a violência doméstica ou no lar; em acabar com o assédio na rua ou no trabalho; em equiparar os salários; em poder trabalhar e conciliar o trabalho com a vida no lar, sem estar sempre esgotadas; em que a nossa voz esteja representada no congresso ou nos governos locais, regionais ou nacionais, ou em que possamos ser nós a decidir sobre o nosso corpo e o nosso planeamento familiar. Não podemos continuar à espera, temos de acelerar o passo agora.

O Chile tem importantes relações económicas com os EUA e a China. É possível dar-se bem com a velha e a nova potência ao mesmo tempo?

Claro que sim. Além disso, EUA e China são grandes sócios comerciais entre eles. Nós temos praticado uma política de abertura ao maior número de mercados possível. Neste contexto, o Chile conta com acordos de livre comércio com ambas as potências e a China converteu-se no nosso principal sócio comercial e os Estados Unidos no segundo. Mantemos estreitas relações com ambos os países, em todos os âmbitos, incluindo fortes laços políticos, de investimento, intercâmbio cultural e cooperação. Apesar da nossa ligação bilateral a cada um deles, neste momento estamos a trabalhar, a partir da função de presidente pro tempore da Aliança do Pacífico - a que pertencemos com o México, o Peru e a Colômbia -, para aproximar as posições das diferentes economias do Pacífico, incluindo a China e os EUA, e avançar na liberalização do comércio o mais possível.

A Aliança para o Pacífico e o Mercosul são compatíveis? Como é que o Chile pode influenciar ambos os grupos e a relação com a União Europeia?

São compatíveis desde a nossa proposta de convergência na diversidade. Cada região ou conjunto de países pode defender os seus interesses e identidade, mas ao mesmo tempo pode procurar aqueles pontos em comum que lhe permitem acordos importantes para os seus povos. Nós estamos a fazê-lo com o Mercosul e também com a União Europeia e com outras instâncias internacionais. Não há dúvida de que este tipo de estratégia é favorável para todos, porque vamos abrindo mercados e facilitando o comércio, superando as restrições ou entraves. Em suma, o que procuramos é gerar melhores oportunidades para as pessoas. Estabelecemos um marco de cooperação entre os dois blocos e vamos reunir-nos em abril para continuar a avançar em temas como a facilitação do comércio, a conectividade e a mobilidade de pessoas.

Da poesia de Neruda aos vinhos, há muito da cultura do Chile que é apreciado em Portugal. Como classifica a relação bilateral?

A relação bilateral passa por um momento muito bom. A coincidência de interesses, aliada à visualização de ambos os países como modelos semelhantes, abre a oportunidade efetiva para fortalecer e aprofundar as relações e a cooperação no plano político, económico, científico e cultural. Além disso, ambos os países partilham uma comunidade de objetivos nacionais e internacionais, o que favorece o seu relacionamento, trabalho em conjunto e cooperação em todos os planos. Portugal foi o primeiro país a reconhecer o Chile como Estado independente a 11 de agosto de 1821 e tem uma relação tradicional de amizade com o Chile. Os vínculos políticos foram interrompidos a partir de 1974, com intermitências, e restabeleceram-se em 1990, com a recuperação da democracia no Chile. Neste cenário, temos vindo a aprofundar a nossa relação bilateral e hoje existe um mecanismo de consultas políticas que dá impulso à relação cada vez mais rica e complexa, já que inclui aspetos políticos, económicos, comerciais, de investimentos, científicos, culturais e de cooperação. Neste ponto, quero destacar também um aspeto fundamental que é o da solidariedade. Portugal tem sido um país comprometido e solidário com o Chile ao longo da sua história. Foi especialmente solidário depois do golpe de Estado no Chile em setembro de 1973 e voltou a ser profundamente solidário há poucas semanas, quando, por causa dos incêndios florestais que afetaram parte do território nacional, enviou um grupo de 52 bombeiros portugueses para colaborar no combate ao fogo no âmbito de um pedido de ajuda, o que valorizamos e agradecemos. Por outro lado, sentimo-nos profundamente satisfeitos e aplaudimos a eleição do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. O nosso país reconhece as amplas credenciais do ex-primeiro-ministro português como máximo representante multilateral e o vasto conhecimento que tem do sistema das Nações Unidas e a sua grande experiência nesse organismo, valorizando, especialmente, a relevância que deu ao tema de género.

A sua visita desta semana pode trazer novas parcerias?

O Acordo de Associação (AA) entre o Chile e a União Europeia é o que estabelece a relação económico-comercial entre o Chile, a UE e os seus Estados membros, entre eles Portugal. Hoje, encontramo-nos em pleno processo de modernizar este acordo para o tornar suficientemente flexível e amplo para permitir incluir dentro do mesmo a nossa relação com a UE e os seus Estados membros. Agradecemos o apoio que Portugal tem manifestado desde o princípio a esta nova etapa das nossas relações com a UE em geral e Portugal, em particular. Esperamos que este acordo modernizado sirva de base para uma nova relação como sócios em áreas de cooperação, comércio e inversões. Da mesma forma, estamos centrados na procura de mecanismos modernos e eficientes para melhorar a nossa cooperação para o desenvolvimento de forma triangular, com o objetivo de estabelecer o marco geral das futuras ações conjuntas a desenvolver em terceiros países, entre eles os países africanos de língua portuguesa. Nesse âmbito, posso assinalar que o Chile foi convidado como país observador à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Aceitamos com muito gosto este convite, dado que apoiamos esta instância, pois constitui para nós uma interessante oportunidade para podermos continuar a política de aproximação aos países de língua portuguesa. Além disso, no marco de uma rica agenda cultural, estamos a trabalhar juntamente com Portugal e Espanha na comemoração do V Centenário da Primeira Viagem de Circum-Navegação realizada por Fernão de Magalhães. Para nós, a figura do navegador português é relevante, pois foi o primeiro a observar o estreito ao Sul do Chile, que tem o seu nome e serviu como ponte para o encontro entre duas civilizações. De tal forma que, até hoje, este português dá nome a uma das regiões do Chile, a décima segunda; a Região de Magalhães. A população desta região está centrada - através do trabalho de uma comissão criada pela sua máxima autoridade política - em trabalhar para a celebração deste aniversário, criando, entre outras, iniciativas e atividades alusivas à pessoa de Fernão de Magalhães e à sua façanha, à exploração do estreito e sua navegação (de 21 de outubro a 27 de novembro de 1520). Por outro lado, a capital da região, a cidade de Punta Arenas, pertence à Rede Mundial de Cidades Magalhânicas, juntando-se assim como parte da Rota de Magalhães proposta por Portugal como Património da Humanidade diante do Comité do Património Mundial da UNESCO.

Que áreas de cooperação o Chile e Portugal podem ter?

São várias e amplas as áreas em que podemos cooperar, por exemplo em matéria de proteção civil. Como já assinalei, devido aos incêndios florestais recentes no Chile, um grupo de 52 bombeiros portugueses viajou para colaborar no combate ao fogo no nosso país. Este gesto de solidariedade levou-nos a abrir uma via de cooperação nesta área. Outra área em que procuramos cooperar é na empresarial. Portugal é um Estado observador da Aliança do Pacífico, que reúne quatro países da América Latina: México, Colômbia, Peru e Chile. Nessa qualidade, apresentou-nos uma proposta preparada por 12 serviços setoriais com 34 ações focadas nas pequenas e médias empresas em quatro setores: infraestruturas; energias renováveis e eficiência energética; tecnologias da informação e da comunicação (no campo da educação); e turismo. Por último, quero falar do acordo que esperamos assinar durante a minha visita de Estado a Portugal: refiro-me a um que permite que os jovens que viajem de férias para os nossos respetivos países possam trabalhar (visas Working Holiday). A assinatura deste acordo significará uma oportunidade para estreitar as relações bilaterais entre os nossos países, especialmente entre os jovens.

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