"Se as acusações contra Trump são de ingerência, não podem ser os eleitores a decidir"

Georg Vanberg, diretor do departamento de Ciência Política na Universidade Duke, nos EUA, esteve em Lisboa para a apresentação do livro <em>Constitutions in Times of Financial Crisis</em>, produzido com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos. A conversa com o DN girou em torno do <em>impeachment</em> de Trump, do êxito de Portugal para sair da crise e do seu ceticismo em relação à exportação da geringonça.
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Parece estarmos a assistir à crescente judicialização da política americana. Com este processo de destituição contra o presidente Donald Trump, diria que pode ser perigoso quando o poder legislativo assume o judicial?
É importante esclarecer alguns conceitos. Mesmo no que se refere ao impeachment [destituição], é preciso diferenciar entre o processo na Câmara [dos Representantes (CR)] e o julgamento no Senado. Claro que em certo sentido há uma aura de procedimento judicial em torno disto tudo. A Constituição fala em crimes e delitos graves e vai haver um julgamento. Ao mesmo tempo, eu não colocaria o processo de destituição dentro da questão mais lata da judicialização da política. São coisas separadas. O impeachment, num sistema presidencial, será necessariamente um processo político, porque há questões políticas envolvidas em retirar um presidente eleito do cargo. Ao escrever a Constituição, os pais fundadores decidiram de forma consciente que essa não seria uma função que iam atribuir aos tribunais mas antes ao ramo legislativo. Nesse sentido, o ramo judicial não se está a imiscuir na política aqui. Apenas este processo foi deixado nas mãos do Congresso. E toda a gente sabia desde o início que as coisas iam ter o rumo que estão a ter agora. O presidente e os seus apoiantes vão sempre dizer que esta é uma charada política e que não tem nada que ver com outras questões.

A própria votação na CR foi muito política, não houve um único voto republicano a favor da passagem para o julgamento no Senado.
Sim, exatamente, o que não aconteceu noutras destituições no passado. Trump é uma figura ímpar e o nosso sistema político está num momento que torna este impeachment diferente, por exemplo, do de Bill Clinton. Ou simplesmente diferente daquilo que esperávamos que uma destituição fosse.

Com as eleições marcadas para final do ano, este processo não vai tornar Trump ainda mais forte?
É uma ótima pergunta, que levanta várias questões. Uma delas é a de saber se é correto iniciar um processo de destituição contra um presidente tão perto de umas eleições. E podemos usar o argumento de que com umas eleições tão perto, devíamos deixar a decisão para os eleitores. Mas neste caso particular, não acho que essa seja a resposta correta. Os assuntos em causa aqui têm que ver com a integridade do próprio processo eleitoral. Nesse sentido, dizer que vamos deixar os eleitores decidir, quando o que está em causa é até que ponto houve interferência no processo através do qual os eleitores escolhem, parece problemático. Se as acusações são de ingerência nas eleições, então não podemos dizer que têm de ser os eleitores a decidir.

Porque poderia não ser uma eleição justa?
Até ao final do verão, achei que seria melhor não avançar para o impeachment, porque seria uma distração de outros assuntos mais importantes. Mas quando as transcrições daquela chamada (entre Trump e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky) tornaram-se públicas, acho que os democratas não tinham alternativa. A certa altura, temos de fazer o que tem de ser feito. E é um exercício para a história, porque acho que ninguém tem dúvidas sobre o que vai acontecer. Mas tinha de ser feito. Quanto a saber se vai favorecer Trump, talvez. Mas por outro lado já estamos num contexto tão divisivo, em que tanto os apoiantes como os opositores de Trump já estão tão radicalizados, que não sei se isto vai fazer grande diferença. Duvido que alguém que não fosse votar em Trump vá fazê-lo agora. Este é mais um sintoma da situação em que já nos encontramos.

Esteve em Portugal para apresentar o livro Constitutions in Times of Financial Crisis. Porque é que os EUA saíram melhor da crise do que a Europa? As Constituições fizeram diferença?
Quero sublinhar que não sou economista, mas diria que há semelhanças, mas também diferenças que são relevantes aqui. Uma das grandes diferenças, que terá tido um papel importante para Portugal, mas também para a Grécia, é o facto de ao estarem dentro do sistema monetário da União Europeia, não tinham a mesma flexibilidade para decidir as suas políticas monetárias do que os EUA tinham. Isso teve um enorme impacto porque estreitou as formas que estes países tinham de equilibrar o orçamento. Por isso as ferramentas disponíveis para os EUA eram muito mais vastas do que as ferramentas ao alcance dos governos europeus. A segunda diferença é que em Portugal e na Grécia, em particular, parte do desafio passava por lidar com reformas na administração pública. Tanto em termos de baixar o défice orçamental como pensar em compensações e esquemas de pensões no setor público. Este não teve um peso tão grande nos EUA por várias razões. Uma é que não havia um ator externo a forçar os EUA a lidar com o seu défice e os problemas orçamentais.

O governo dos EUA tem claramente um problema de défice, semelhante ao dos piores países europeus. Mas não há um ator externo, como o FMI ou a União Europeia, a forçar os EUA a lidar com ele. Por isso as decisões difíceis que tiveram de ser tomadas em Portugal ou na Grécia nunca aconteceram na América porque o governo simplesmente pôde ignorá-las. Desta forma, os EUA puderam continuar a ir aos mercados financiar-se a taxas de juro que são sustentáveis. Essa é uma grande diferença. Outra é que nos EUA grande parte da crise foi uma crise de hipotecas. O desafio maior era esse e, ainda, lidar com as repercussões disso, sobretudo no sistema bancário. Mas mal isso ficou resolvido - e custou muito dinheiro -, não foram necessárias políticas a longo prazo. Em Portugal e na Grécia o problema era muito mais complicado.

Em Portugal, a Constituição criou barreiras a algumas medidas de austeridade, sobretudo para salvaguardar os direitos dos trabalhadores. Como se gere o equilíbrio entre manter os direitos dos trabalhadores e impor as medidas de austeridade necessárias?
É uma pergunta profunda e difícil. Estamos a falar de uma das questões mais complicadas quando se trata do constitucionalismo versus os direitos individuais e a sua proteção. Robert Jackson, que foi juiz do Supremo Tribunal dos EUA e também o principal procurador nos julgamentos de Nuremberga após a II Guerra Mundial, costumava dizer que a Constituição não é um pacto de suicídio. O que ele queria dizer é que temos Constituições e temos direitos porque há momentos em que queremos limitar as decisões políticas e garantir que as pessoas estão protegidas dos abusos de poder. Mas ao mesmo tempo pode haver circunstâncias em que temos de ser flexíveis. A questão é como gerir isso.

Não queremos ser demasiado flexíveis quando não é necessário, mas por outro lado, como ele disse, não é um pacto de suicídio. Como alguém que assistia de longe, uma das coisas que me espantaram no Tribunal Constitucional português foi a sua sensibilidade política, mas também a sensatez com que tentou gerir esse equilíbrio, reconhecendo que, perante a fraca margem de manobra do governo e a enorme pressão para impor medidas de austeridade, o tribunal tinha de ser flexível e permitir ao governo fazer algumas coisas, como cortar salários e pensões, etc. Por outro lado, insistiu que a Constituição cria limites ao que pode ser feito. E do que consegui ler das suas decisões, o Constitucional conseguiu isso pondo a ênfase no processo e na equidade; se têm de ser feitos sacrifícios, é uma coisa, mas temos de pensar que esses sacrifícios devem ser feitos de forma a distribuir o peso por toda a sociedade. Não se pode ter como alvo apenas um grupo de pessoas, como os funcionários públicos, por exemplo. Essa pareceu-me uma forma sensata de abordar a crise e parece ter funcionado.

Tivemos eleições em outubro e a chamada geringonça deixou de existir formalmente, temos um governo de minoria socialista em Portugal. Como viu a solução anterior, alternativa a uma coligação de governo, que muitos países tentaram copiar?
Grande parte do meu trabalho centra-se no estudo das coligações de governo. E se olharmos para esta solução portuguesa de forma descritiva e política, diria que há exemplos semelhantes noutros países, sobretudo na Escandinávia - Dinamarca, Suécia -, onde há um longo historial de governos minoritários com apoio de outros partidos. Algumas destas soluções passam por acordos escritos, outras não, são muito mais flexíveis. Algumas são tão flexíveis que os partidos que apoiam o governo nem sequer estão identificados. Por isso o governo pode depender de partidos diferentes para aprovar diferentes leis. Uma coisa que torna Portugal diferente neste caso, e por isso sou cético quanto a esta solução poder funcionar como modelo para outros países na Europa, é que os socialistas estão a lidar com dois partidos de esquerda que têm mostrado muito boa vontade para aprovar medidas que ainda vieram no seguimento das medidas de austeridade.

O que não seria, tradicionalmente, de esperar de partidos tão à esquerda no espectro político. O acordo de minoria que houve em Portugal funcionou porque o governo de minoria teve parceiros com os quais pôde contar e que não se comportaram como os partidos de oposição se comportariam normalmente. Não tenho a certeza de que nos outros países europeus exista essa constelação de partidos. O que é que acho dessa solução? Não sou grande fã, devo dizer. Por um lado funcionou em Portugal. Por outro, parece-me importante a capacidade de os eleitores pedirem contas aos partidos, e este género de acordo prejudica isso. Porque os partidos que apoiam mas não estão no governo podem sempre dizer "oiçam, nós não somos responsáveis, fomos atrás mas não tivemos grande influência nisto, não fazemos parte do governo". E o governo pode sempre dizer: "Nós só temos uma minoria, tivemos de fazer compromissos para obter apoios. E todos têm a oportunidade de culpar os outros por qualquer coisa que corra mal. E isto é verdade também em governos de coligação, mas esta solução vem exacerbar esse aspeto. Por isso prefiro uma solução em que seja mais fácil para os eleitores identificar os responsáveis por uma política - e decidir se devem ser recompensados ou castigados por ela.

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