Idai: no centro de Moçambique, a canoa que recolhe corpos encontrou mais um

Aqui não há helicópteros, nem barcos com motor, nem mergulhadores equipados para ajudar a salvar a população em risco, só uma canoa esculpida à mão e com remos improvisados.
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Também já não há ninguém para salvar e o que resta é recolher os corpos no rio Lucite e no mato esfolado que o rodeia junto a Matarara, distrito de Dombe, na província de Manica.

Essa é agora a tarefa de António e Armando, contam à Lusa: ir em busca de parentes e amigos das dezenas de pessoas que estão abrigadas num centro de apoio improvisado no povoado de Tussani Ngoma, um lugar no meio do mato.

Um rolo compressor parece ter esmagado a paisagem por vários metros de extensão dos dois lado do rio.

As águas subiram no domingo, levaram tudo na frente e António Mateus contou cinco luas até poder descer das árvores, onde se refugiou, e ir procurar a garrafinha onde guardava as poupanças, levada pelo rio, que transbordou de repente.

"Vim procurar o meu dinheiro que perdi nesse dia. Cheguei até aqui, no mato", o lado para onde a água corria e onde esperava encontrar o mealheiro.

Em vez disso descobriu o corpo de uma criança, no meio da vegetação quebrada pela força das correntes.

Mostra-nos que o corpo ainda permanece no local, guardado pelo capim, rodeado de "matope" (lama).

Os pais já foram avisados, explica, e estão a providenciar a transferência dos restos mortais do filho.

Uma semana depois de o ciclone Idai ter destruído e inundado o centro de Moçambique, António e Armando Jacob ainda caminham em água barrenta que lhes chega pelo joelho.

Seguimos pelo rio e ao longo do percurso vão indicando de que sítios das margens já recolheram corpos, quase 30, e outros onde algumas pessoas se abrigaram e foram salvas.

"A minha esposa estava ali", diz Armando, ao apontar para um conjunto de palmeiras esventradas.

Outras quatro pessoas, tias e os primos, ainda não apareceram.

"Até agora não conseguimos encontrar. Estavam dentro de casa. Saíram para ver, quando a água começou a correr. Tentámos subir na árvore, [mas] outro caiu", vai dizendo, num discurso fragmentado.

Numa pausa explica que a comida escasseia, está cansado, exausto, o mundo virou-se-lhe ao contrário.

Não sabe quantas famílias ainda lhe vão pedir para encontrar alguém com a canoa rente à lama, só sabe que são "muitas, muitas" - e da mesma, outros percorrem também as margens e o mato, na esperança de um qualquer reencontro com os mais chegados.

António e Armando regressam ao centro de apoio para tentar receber um punhado de arroz, numa fila de adultos, crianças e bebés a ser amamentados - esperam pela vez, enquanto se entrega a ajuda alimentar, que as autoridades moçambicanas fizeram ali chegar.

Abrem-se os sacos, apanha-se o arroz, há de haver alguma água para cozer o único conforto que o estômago sabe que vai receber, o próximo é sempre uma incógnita.

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