Queda de governantes, acusações e muita investigação. A vida da Der Spiegel até Ronaldo

Uma análise do jornalista e escritor luso-alemão Miguel Szymanski sobre as décadas de casos que a revista desencadeou e como acompanhou a queda de muitos poderosos.

Conforme o nicho em que um português vive, há termos em alemão que domina: "Achtung", entendido por turistas ou fãs dos U2; "Weltanschauung" e "Leitmotiv", frequentemente usados por intelectuais e filósofos de café; "Kitsch", óbvio para estetas, "Volkswagen", termo que designa uma empresa especializada na medição manipulada de gases de combustão.

A partir de finais de setembro muitos portugueses começaram a ouvir uma nova palavra na língua de "Goethe" (uma espécie de Camões alemão, mas burguês e que se ficou por viagens a Itália): Der Spiegel. "Spiegel" significa espelho.

A 28 de setembro a revista semanal Der Spiegel publicou a história, minuciosamente documentada, das acusações de violação contra Cristiano Ronaldo, para muitos portugueses o maior herói nacional da atualidade. Milhares de portugueses leram, em inglês ou na tradução portuguesa, o longo artigo na revista que marca há mais de 70 anos a atualidade na Alemanha.

Muita gente não gostou do que leu e do que viu no Der Spiegel. Mas o que está em causa é avaliar se a investigação da revista reflete com rigor a realidade ou só uma perspetiva, enviesada ou não, da realidade.

Para isso vale a pena olhar um pouco mais de perto para a revista alemã que, ao longo das últimas décadas, desencadeou ou acompanhou a queda de muitas pessoas poderosas.

Alcance vai do governo ao futebol

Muitos ministros acabaram por sair do governo depois de serem alvo de investigações da Der Spiegel, um presidente da república alemã demitiu-se, grandes empresários e ídolos do futebol, como o ex-campeão mundial e presidente do Bayern de Munique, caíram em desgraça e foram parar à prisão.

Antes de mais, a revista alemã dispõe de meios inimagináveis na imprensa portuguesa: com sete delegações na Alemanha e 17 escritórios de correspondentes espalhados pelo globo, ao todo a trabalham 245 jornalistas para uma revista que vende semanalmente mais de 700 mil exemplares (há dez anos as vendas ainda estavam acima de um milhão).

Tal como aconteceu no artigo sobre Ronaldo, é frequente ser constituído um grupo de redatores e correspondentes que, durante meses se necessário, ficam a trabalhar num assunto, até avançarem com a publicação de um artigo, previamente escrutinado a pente fino por uma equipa de advogados.

No início a Spiegel funcionava sob a tutela da força de ocupação britânica, que no final dos anos 40 chegou proibir a publicação da revista durante duas semanas, por ofensas à casa real da Holanda, que não tinha gostado do tom de um artigo.

Em 1950 a Der Spiegel publicou uma história de corrupção que correu mundo: deputados do Bundestag receberam luvas para votarem em Bona em vez de em Frankfurt como nova capital da Alemanha. Dois anos mais tarde iria ser publicado um artigo com acusações de espionagem contra o chanceler alemão Adenauer e toda a edição foi confiscada. No primeiro caso ficou provada a história, no segundo não.

O caso que deu fama ao Spiegel

Nos anos 60 a revista publica documentos militares, que revelam que a NATO não conseguiria resistir a um ataque da URSS. Na sequência desse artigo, o fundador e publisher da revista passa três meses em prisão preventiva acusado de traição, mas cinco ministros acabam por anunciar a sua demissão e fazem cair o ministro da defesa - e com ele todo o governo. Este caso conhecido por "Spiegel-Affäre" está na génese da fama da Der Spiegel como garante da liberdade de imprensa.

Mas ao longo da sua existência, até aos dias de hoje, a revista também se viu confrontada com muitas acusações de meios políticos, académicos e de outros órgãos de imprensa, desde funcionar com "métodos da polícia nazi", com dossiers secretos sobre "cidadãos suspeitos", à de ocultar ativamente o passado nacional-socialista de vários dos seus jornalistas.

Se os factos apresentados e a investigação da Der Spiegel tendem a ser irrepreensíveis, também aqui se aplica a máxima latina, que deve ser tida em conta sempre que se lê um texto: caveat lector (o leitor que se acautele).

A Der Spiegel, nos seus sucessos e no seu rigor, mas também na sua forma implacável de proceder, acaba por ser um espelho das virtudes públicas e dos vícios privados da sociedade alemã.

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