Pontapé de saída para eleições? Bolsonaro falou, Lula também e 2022 está logo ali

No dia da independência do Brasil, o antigo presidente surpreendeu ao discursar ao país cinco horas antes do atual chefe de estado. Apoiantes, observadores e população não têm dúvidas: a dois anos de distância, o pontapé de saída da eleição presidencial foi dado.

"Jair Bolsonaro converteu o coronavírus em arma de destruição em massa" e "subordinou o país aos Estados Unidos de maneira humilhante", disse Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), em discurso nos seus perfis nas redes sociais, dia 7 de setembro, data da independência do Brasil.

Ao longo de quase 24 minutos, o presidente de 2003 a 2010 falou do financiamento do sistema nacional de saúde brasileiro, da Amazónia, do "furor privatista" do governo, da violência da polícia contra os negros - "quantos George Floyd já morreram no Brasil?" -, da perseguição a pesquisadores, professores e artistas e da nomeação de "centenas de militares" para cargos estratégicos numa "escalada autoritária" que lembra "os tempos sombrios da ditadura".

Falou, enfim, de "um pesadelo que parece não ter fim desde 2018", ano da eleição de Bolsonaro, "um mostrengo parido pelas oligarquias".

E rematou: "O povo não quer revolver, quer comida (...) Nessa empreitada árdua, mas essencial, eu coloco-me à disposição do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores e dos excluídos".

Dificilmente um candidato em campanha teve discurso tão de candidato como Lula a dois anos de uma eleição presidencial em que, à partida, até não pode concorrer - embora o Supremo Tribunal Federal (STF) venha dando sinais de que deve considerar o juiz Sergio Moro parcial no célebre caso do apartamento Tríplex no Guarujá e assim permitir a candidatura do antigo líder sindical, que fará 77 anos em outubro de 2022, data das eleições.

Cinco horas depois de Lula, falou Jair Bolsonaro (atualmente sem partido) por cerca de três minutos, uma tradição de 7 de setembro. "No momento em que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da república, o meu amor à pátria e o meu compromisso com a constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso país jamais abrirá mão", afirmou.

"O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade (...). Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre (...) Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada", concluiu.

A frase é uma alusão ao golpe militar de 1964 que instituiu a ditadura no Brasil. E uma provocação à TV Globo, uma vez que as frases são uma cópia das de Roberto Marinho, fundador da emissora, em editoria do jornal O Globo em 1984.

Duelo de líderes populares

"A campanha já começou faz tempo mas a grande novidade é a entrada do Lula com um discurso de candidato. O principal objetivo dele, a meu ver, é recuperar terreno face ao Bolsonaro, que conquistou os mais pobres com o auxílio emergencial durante a pandemia e que quer agora torna-lo permanente, com outros valores, no programa Renda Brasil", afirmou Vinícius Rodrigues Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado, ao DN.

Para o académico, o Brasil terá em 2002, por isso, "um embate entre os dois maiores líderes populares do Brasil pós anos 80, gostemos ou não deles, o Bolsonaro e o Lula".

"É uma luta que pode resumir o Brasil dos anos 30 para cá: ambos são herdeiros de Getúlio Vargas [presidente de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954], que namorou o fascismo mas acabou na história como pai dos pobres e referência da esquerda e centro-esquerda", recorda.

"Um é de direita e outro de esquerda, mas ambos com raiz no sindicalismo, porque o Bolsonaro sempre agiu como sindicalista dos militares, o que os aproxima no estilo. Bolsonaro é um líder autoritário, já o demonstrou, Lula jamais, embora haja correntes no PT que vêm a democracia apenas como meio para fazer a revolução, como ilustra o apoio contínuo a Hugo Chávez", diz ainda Vieira.

"De resto, visões de mundo diferentes: o Lula vê o Brasil como país do Sul Global, que tem de se aliar a outros países em desenvolvimento, como Índia e China, enquanto Bolsonaro prefere se aliar ao mundo ocidental que, no entanto, não nos vê como ocidentais, é um delírio das nossas elites achar que o mundo ocidental nos vê como ocidentais".

Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva, disse à revista Exame que "há uma tentativa de fazer o Lula voltar a ocupar no imaginário das pessoas um papel de estadista, que por conta de todos os acontecimentos políticos recentes, ele foi perdendo ao longo do tempo". "O discurso foi simbólico não só por ser no 7 de setembro mas porque foi uma posição nos moldes do que ele fazia quando era presidente".

Entretanto, defende, "se Bolsonaro puder escolher um adversário, será o Lula". "Ele é a força capaz de manter o antipetismo [aversão ao PT] maior que o antibolsonarismo [aversão ao presidente], como foi em 2018".

Em sondagem da mesma revista divulgada uma semana antes das comunicações, Bolsonaro seria reeleito em todos os cenários em 2022. Na primeira volta, ganharia a Lula com 31% a 17% dos votos; na segunda, por 42% a 31%. Outros nomes como Ciro Gomes, terceiro classificado em 2018, e o apresentador Luciano Huck aparecem com menos de 10% dos votos.

Colunista do portal UOL, Tales Faria escreveu que "os termos do discurso divulgado pelo ex-presidente Lula, uma carta aberta aos brasileiros, teve todos os ingredientes de uma peça de campanha eleitoral, ao falar, por quase 24 minutos, como possível candidato à presidência da República".

"No mesmo 7 de setembro", prossegue o jornalista, "o presidente Jair Bolsonaro fez uma manifestação formal e insípida, de pouco mais de três minutos". "Parecia acuado. Jogou na defesa, lendo, titubeante, um discurso que claramente não foi escrito por ele, não tinha o seu tom, sua agressividade costumeira".

As reações acaloradas de políticos, apoiantes de um e de outro, foram outro sintoma do início, de facto, do duelo para 2022.

"Surra nas urnas"

"Lula fez um pronunciamento na internet no qual praticamente lançou a sua candidatura presidencial de 2022. Lula pode vir que Bolsonaro vai continuar fervendo. O petista vai tomar uma surra nas urnas tão grande que nunca mais vai pensar em se candidatar novamente", disse o presidente do PTB Roberto Jefferson, peça central do Escãndalo do Mensalão que se tornou aliado do presidente.

"Em discurso, Lula afirma que os bancos públicos estão sendo utilizados para enriquecer famílias. Acho que ele está confundindo o governo de Bolsonaro com o governo dele, em que a família dele e a quadrilha petista encheram seus bolsos com dinheiro público", opinou Carlos Jordy, do PSL, alinhado com o governo.

Do outro lado, Guilherme Boulos, do PSOL, partido de esquerda pelo qual concorreu às presidenciais de 2018 e concorre este ano à prefeitura de São Paulo, "Bolsonaro não consegue fazer um pronunciamento na televisão sem mentir compulsivamente: diz defender a democracia, mas celebra o golpe de 64; diz amar a pátria, mas quer entregar a Amazónia para os americanos".

"Lula é hoje uma das maiores lideranças populares do mundo, com porte de estadista. Já Bolsonaro, sempre apostando no ódio, mostrou mais uma vez, ao exaltar a ditadura militar, que é minúsculo, que não tem nada a oferecer ao Brasil", disse Lindbergh Farias, do PT.

"[Donald] Trump já foi visitar a embaixada do Brasil hoje, para homenagear a nossa independência? Lembremos que Bolsonaro fez isso na data magna dos Estados Unidos. Não há reciprocidade? Ou é mera subserviência mesmo?", provocou Flávio Dino, governador do Maranhão pelo PC do B e apontado como pré-candidato da esquerda a 2022, caso Lula seja impedido de concorrer.

A batalha online

Nas redes sociais, a repercussão do duelo foi anterior aos discursos. Logo após o anúncio de que ambos iam falar, o tema entrou na lista de assuntos mais comentados da rede social Twitter sob a hashtag #sr.presidente. E de acordo com levantamento da revista piauí a vitória, num cenário que Bolsonaro costuma dominar, pertenceu a Lula.

No YouTube, o canal de TV governamental registou aproximadamente 108 mil visualizações da comunicação de Bolsonaro, até quarta-feira, perdendo para o próprio Bolsonaro de 24 de março, em plena pandemia, quando alcançou mais de 5,4 milhões de visualizações.

Somando os canais da Rede TVT e do PT Nacional no YouTube, Lula alcançou mais cerca de 100 mil visualizações.

O canal de Bolsonaro, por outro lado, obteve pouco mais de 106 mil visualizações, enquanto o de Lula passou das 678 mil.

Na estratégia do Facebook, outra improvável vitória de Lula, aponta a piauí: 2,8 milhões de visualizações de Lula contra cerca de 2,1 milhões de Bolsonaro.

No Twitter, as menções a Bolsonaro dobraram as citações a Lula mas até aí o candidato de esquerda pôde festejar: cresceu 370% no dia do discurso face à véspera, enquanto o presidente de extrema-direita só subiu seis pontos no dia em que falou ao país.

Em dados mais subjetivos, a popularidade de Bolsonaro foi medida pelos gritos de "mita, mita" [supostamente o feminino de mito, alcunha do presidente entre os apoiantes] dirigidos a Michelle Bolsonaro por manifestantes, enquanto o casal desfilava num Rolls Royce por Brasília, acompanhados por oito crianças (todas brancas, conforme registado pela imprensa).

A primeira-dama tem estado sob mira por ter recebido cinco depósitos ainda por explicar de um assessor do enteado Flávio Bolsonaro que é peça chave de um esquema milionário de corrupção com base no Rio de Janeiro.

Em contrapartida, nas principais cidades do Brasil houve "panelaços" (protestos ruidosos nas janelas de casa) enquanto Bolsonaro falava. Pelas palavras de ordem ouvidas, não foram apenas apoiantes de Lula a manifestarem-se - muitos gritaram por Sérgio Moro, ex-ministro da justiça que saiu do governo em rota de colisão com o presidente, e pela Operação Lava-Jato, em retrocesso nos últimos meses.

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