Pompeo, a loiça lavada e a venda de armas à Arábia Saudita
As primeiras notícias davam conta de que o inspetor-geral do Departamento de Estado estaria a investigar um alegado abuso do secretário de Estado por este dar tarefas domésticas a um funcionário federal. Horas depois, mais notícias: Steve Linick estaria a realizar um inquérito sobre a venda de 8,1 mil milhões de dólares em armamento à Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Jordânia apesar de a Câmara dos Representantes e o Senado terem votado contra.
No espaço de mês e meio, o presidente norte-americano demitiu quatro inspetores-gerais. Mas este caso está a levantar ondas inclusive junto dos republicanos. A exoneração de Steve Linick, na sexta-feira à noite, pode ter terminado com uma investigação em curso, mas outra vai iniciar-se, desta vez no Congresso.
"Nunca tinha ouvido falar dele", disse Donald Trump sobre o homem que tinha como função supervisionar o regular funcionamento do Departamento de Estado.
O presidente pode ignorar a identidade do homem, mas Linick é um alto funcionário nomeado em 2013 por Barack Obama que, no ano passado, ao apresentar à Câmara dos Representantes contas sobre os seus primeiros cinco anos de mandato, disse ter realizado mais de 600 relatórios nos quais foram identificados 1,7 mil milhões de dólares em potenciais poupanças.
Para Trump, porém, bastou o pedido de "Mike" para lhe dar ordem de saída. "Têm de perguntar a Mike Pompeo", disse aos jornalistas sobre os motivos do despedimento.
Segundo uma fonte no Congresso revelou à CNN, Pompeo recusou ser questionado por Linick sobre o esquema usado pela administração para realizar a venda de armas sem autorização do Congresso.
E o que disse o secretário de Estado? Ao Washington Post, limitou-se a dizer que o trabalho de Linick estava a "prejudicar" o Departamento de Estado, mas não descreveu quaisquer problemas específicos.
"Fui ter com o presidente e indiquei-lhe claramente que o inspetor-geral Linick não estava a desempenhar uma função de uma forma que nós tínhamos tentado levá-lo a desempenhar, que era adicionar valor ao Departamento de Estado, em linha com o que o estatuto diz que deveria estar a fazer", afirmou.
Pompeo lembrou que, enquanto diretor da CIA trabalhou com um inspetor-geral que fez "um trabalho fantástico" e, como tal, melhorou a agência. "O Linick não fez isso."
Por outro lado, Pompeo rejeitou as notícias de que a decisão foi um ato de retaliação política face à investigação de que Pompeo deu ordens a um funcionário do Departamento para fazer recados ao casal Pompeo, como por exemplo transportar roupa da lavandaria, passear o cão ou fazer reservas para restaurantes.
"Não é possível que esta decisão, ou antes a minha recomendação ao presidente, se baseie em qualquer medida de retaliação por qualquer investigação realizada ou em curso. Porque simplesmente não sei. Não fui informado", defendeu Pompeo. "Por norma, vejo estas investigações na versão final 24 horas, 48 horas antes de o inspetor-geral estar preparado para as divulgar. Por isso, não é simplesmente possível que isto seja uma represália. Fim da história."
Mas a história não vai acabar aqui. Os democratas do Congresso ficaram indignados com a demissão tomada sem explicações e querem lançar uma investigação sobre se o seu despedimento foi impróprio ou ilegal.
O democrata Eliot Engel, que preside à comissão dos Negócios Estrangeiros da Câmara, foi quem avançou com a possível explicação para o despedimento. "O seu gabinete estava a investigar - a meu pedido - a falsa declaração de emergência de Trump para que pudesse enviar armas para a Arábia Saudita. Ainda não temos o quadro completo, mas é preocupante que o secretário Pompeo quisesse que o sr. Linick fosse expulso antes de este trabalho poder ser concluído", disse Engel à CNN.
"Parece-me bastante político o presidente despedir uma pessoa considerada competente e que está a investigar uma declaração de emergência de segurança nacional para justificar uma venda de 8,1 mil milhões de armas à Arábia Saudita. Penso que dá sinais claros de retaliação contra Linick por parte da administração Trump", considerou a representante democrata Nita Lowey à NPR.
No campo republicano não há vozes no Capitólio a defender Trump nem Pompeo. O senador Mitt Romney, que votou a favor da condenação de Trump no processo de destituição, classificou a medida de "uma ameaça à democracia responsável". E o senador Charles Grassley disse que o Congresso merece mais uma explicação de Trump sobre o porquê de ter demitido Linick.
Alegando a necessidade de dissuadir aquilo a que chamou "a influência maligna" do Irão no Médio Oriente, há um ano a administração Trump declarou emergência para contornar o Congresso e enviar armas no valor de milhares de milhões de dólares para a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Jordânia, desde espingardas a mísseis teleguiados e os aviões de caça F15.
Na segunda-feira, Trump defendeu o negócio, ao dizer que "quando se paga uma fortuna em armas deve fechar-se o negócio", porque de outra forma os compradores podem comprar à Rússia ou à China. Questionado sobre os direitos humanos não serem respeitados por Riade, limitou-se a dizer: "Não sei."
Num momento raro nos últimos anos, democratas e republicanos do Congresso e do Senado uniram-se, tendo aprovado três leis que proibiam a medida. Os senadores e os representantes questionaram as alegações de emergência da administração, temendo que as armas fossem agravar a guerra no Iémen, já para não falar na situação dos direitos humanos na Arábia Saudita e do assassínio sem consequências do jornalista Jamal Khashoggi.
No entanto, como a legislação não obteve dois terços nas duas câmaras, o presidente pôde vetar a legislação e avançar com a venda, num negócio que deverá demorar meses ou anos a concretizar-se.
Na carta enviada à presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, Trump alegou não mais ter a "plena confiança" em Linick.
Em resposta, Pelosi deu 30 dias -- o tempo que resta de trabalho a Linick -- para o presidente explicar a medida. "É alarmante ver notícias de que a sua ação possa ter sido em resposta a uma investigação que estava a ser concluída pelo inspetor-geral Linick sobre a aprovação de uma venda de armas de milhares de milhões de dólares à Arábia Saudita", escreveu a democrata.
Para Pompeo, o presidente não tem de dar qualquer justificação. "Eles [inspetores-gerais] servem consoante a sua vontade, por qualquer razão ou sem razão."
No ano passado a CNN noticiou a indignação criada junto dos elementos da segurança de Pompeo ao serem instruídos para irem buscar comida chinesa, ao tratador do cão ou levar um filho à estação de comboios. "Ubereats com armas", foi a forma como os agentes classificaram este uso questionável dos seus serviços.
O secretário de Estado recusou-se a confirmar se dá ordens a funcionários do governo para fazerem recados pessoais. "Não vou responder a uma série de acusações infundadas acerca disso", disse ao Washington Post.
Sobre Pompeo, um "homem brilhante", o presidente defendeu que tinha coisas mais importantes a fazer do que cuidar de seu animal de estimação ou de tarefas domésticas.
"Aqui temos um homem que deve negociar guerra e paz com países importantes, que possuem armas como o mundo nunca viu antes", declarou à imprensa. "E os democratas e a imprensa desonesta estão interessados num homem que está a passear o seu cão", disse.
"Prefiro tê-lo ao telefone com algum líder mundial do que a lavar a loiça, porque talvez a sua mulher ou os seus filhos não estejam lá. Já viram como isto soa estúpido para o resto do mundo?".
Trump deu ainda o exemplo de Pompeo poder estar ocupado a falar com o presidente chinês Xi Jinping "sobre compensar alguns dos danos que causaram ao mundo" e aos Estados Unidos, ou com o ditador norte-coreano Kim Jong-un, pelo que precisa de recorrer a alguém. Trump disse: "Ele [Pompeo] diz: 'Por favor, podes passear o meu cão?' "A quem, a uma pessoa dos serviços secretos ou a alguém, certo?"
"Estamos a assistir a um ataque à própria instituição do inspetor-geral", comentou Joel Brenner, ex-inspetor-geral e antigo diretor nacional dos serviços secretos. Para Brenner, é um algo "nunca visto antes" à instituição criada há 42 anos no rescaldo do Watergate, uma "reforma destinada a revelar irregularidades no poder executivo do governo".
À PBS, Brenner comenta: "O presidente parece acreditar que o Congresso não tem autoridade para investigar ou interferir na forma como ele desempenha as suas funções no poder executivo. Penso que é o mais próximo que chegámos de uma teoria de Luís XIV do governo americano, ou seja: 'Eu sou o Estado'."
Para o ex-embaixador na ONU Bill Richardson, o que vai acontecer a seguir "é totalmente inapropriado": ou seja, "um fiel da administração Trump vai assumir o cargo de inspector-geral do Departamento de Estado".
O diplomata explica à NPR: "Os inspetores-gerais estão lá para serem vigilantes independentes." Lembrou a sua experiência quando teve de trabalhar com um. "Eles não estão do seu lado, sr. secretário. Descobri isso. Tive um bom inspetor-geral que apontou problemas, mas trabalhámos em conjunto para tentar resolvê-los. No entanto, respeita-se a independência dessa posição - sobretudo um presidente deveria fazê-lo", concluiu.