Plano Temer: austeridade em versão tropical divide o Brasil

Analistas ainda digerem decisão de instituir um teto de gastos. Os mais à direita dizem que a alternativa é o precipício. Os de esquerda falam em miséria e em retrocesso.
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Os adjetivos com que os analistas vêm classificando o teto para as despesas públicas, principal medida do Plano Temer, vão desde "poderoso" até "dramático", passando pelo mais híbrido de todos: "polémico". Como fere o texto constitucional, precisa da aprovação de três quintos do Congresso Nacional e mexe com áreas como a saúde ou a educação, tem os ingredientes para marcar os próximos meses das gestões do presidente interino Michel Temer, do PMDB, e do seu influente ministro das Finanças, Henrique Meirelles, do PSD.

"Estabelecer que o crescimento da despesa total não pode superar a inflação do ano anterior significa reescrever as normas introduzidas na Constituição de 1988 para os desembolsos em saúde, educação, amparo ao trabalhador, previdência e assistência social", resume Gustavo Patu, do jornal Folha de S. Paulo.

Segundo a Constituição brasileira, o governo é obrigado a vincular receitas ao ensino público e ao sistema nacional de saúde. No total, 80 por cento dos recursos do orçamento têm destino certo. Nos últimos dez anos, as despesas públicas cresceram 93% acima da inflação. Se as regras de Temer e de Meirelles já estivessem em vigor em 2015, o governo teria gasto metade do que gastou.

"É uma medida poderosa", diz Carlos Kawall, economista-chefe do Banco Safra, ouvido pelo jornal O Estado de S. Paulo. "Se conseguir ir na direção do gasto a cair em dois ou três anos entre 1,5% ou 2% do PIB, lembrando que ele cresce em média 0,3% do PIB nos últimos 15, vai conquistar algo muito importante. O economista Raul Velloso disse à TV Globo que "num contexto de emergência total a equipa de Meirelles está certa em conter o crescimento real dos gastos totais, reduzindo-o simplesmente a zero".

O economista Marcos Lisboa, embora favorável a uma revisão nas vinculações, pede cautela. "O Banco Mundial acaba de divulgar que saúde básica, educação básica e programas de transferência de riqueza, que fazem uma diferença enorme na vida das pessoas, correspondem a uma parcela mínima do gasto, nesse gasto não é preciso mexer mas sim no gasto de saúde e de educação do "andar de cima"."

Ironia e indignação

O colunista da Folha Jânio de Freitas ironiza o Plano Temer. "Um país com as continhas orçamentais bem ajustadas (...) mas de volta aos níveis imorais de miséria, pobreza, desordem, ensino em retrocesso constante, saúde pública em coma terminal, indústria nacional desmantelada, desemprego e violência urbana."

Em coro com Freitas, associações de médicos e professores indignaram-se. "É uma sinalização dramática de que a educação não se trata mais de investimento prioritário", afirma Alejandra Velasco, do movimento Todos pela Educação. "O que pretende o ministro das Finanças é reduzir os gastos a um valor que impedirá o atendimento à saúde da população", disse em nota o Conselho Nacional de Saúde. "Vamos fazer política, pressionar senadores, deputados e governo para que as regras se mantenham", afirmou Gastão Campos, da Associação de Saúde Coletiva.

Política e polícia

Como a adoção do teto implica uma mudança no texto constitucional - que Temer cita amiúde na qualidade de professor na área -, não se restringe a vontades económicas: são necessários três quintos dos parlamentares para aprovar a emenda constitucional, ou seja, é fundamental que quem votou pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) mantenha fidelidade ao governo. "Tem de se aprovar as alterações legislativas requeridas, explicando ao Congresso que sem isso o país desaba num precipício", defende Raul Velloso.

O mercado reage sem euforias. Pelo contrário: o dólar até subiu ligeiramente e a Bovespa, bolsa de valores de São Paulo, operou em baixa nos dias seguintes ao anúncio do Plano Temer. A demissão de Romero Jucá, ministro do Planeamento, por causa de fugas de informação a propósito da Operação Lava-Jato, contribuiu para a desconfiança dos investidores. Uma prova de que na crise brasileira atual a economia está absolutamente dependente da política - e da polícia.

São Paulo

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