Planalto censura notícia sobre chantagem à primeira-dama
A pedido do Palácio do Planalto, um juiz de Brasília determinou que dois dos jornais de maior circulação no Brasil, Folha de S. Paulo e O Globo, apagassem notícias das suas edições online sobre a tentativa de chantagem de um hacker a Marcela Temer, mulher do presidente Michel Temer. As direções das publicações recorreram e consideraram a decisão "um ato de censura que não ocorria desde a ditadura militar". Outro juiz levantou, na sequência, a proibição. Em comunicado, Temer negou ser inimigo da imprensa.
O caso data de abril de 2016, em pleno processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff e iminente tomada de posse de Temer. Na ocasião, o hacker Silvonei José de Souza furtou arquivos de um telemóvel da primeira-dama e ameaçou partilhar um áudio comprometedor se não recebesse 300 mil reais, perto de 100 mil euros.
Embora o áudio em que Marcela supostamente em conversa com o irmão revelava que Temer, então vice-presidente, tinha um assessor de comunicação só para questões de baixo nível não faça parte dos autos do processo, o teor das mensagens trocadas entre ela e o hacker pelo aplicativo WhatsApp estão à disposição do público no site do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foram essas mensagens, em que Silvonei chantageia Marcela e esta o chama de "bandido criminoso", que os jornais publicaram. E um primeiro juiz proibiu.
"A inviolabilidade da intimidade tem resguardo legal claro", afirmou o magistrado no seu despacho. Em editorial, a direção da Folha sublinhou que "a reportagem se amparava nas ações penais abertas para apuração do crime, cujo conteúdo estava disponível a quem se dispusesse a consultá-lo". "É uma censura inadmissível", concluiu, apoiada no parecer de entidades representativas do jornalismo e especialistas em direito, como o professor de direito constitucional Roberto Dias para quem "o jornal não violou nenhum segredo judicial, não há nada no texto que pareça violação da privacidade, tudo o que está na reportagem está num processo público". Em comunicado no dia seguinte, Temer rejeitou a "pecha de inimigo e de censor da imprensa".
A petição ao juiz pedindo a proibição de publicação de informações sobre a chantagem sofrida por Marcela Temer é assinada pelo sub-chefe da Casa Civil Gustavo Vale da Rocha, que já foi advogado de Geddel Vieira Lima, ministro derrubado em novembro após escândalo de pedido de intervenção de um órgão público na obtenção de licença de um apartamento privado, e de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados hoje detido em Curitiba no âmbito da Operação Lava-Jato. O PT, maior partido da oposição a Temer, pediu investigação à conduta de Rocha.
Secretário diligente
Silvonei de Jesus, entretanto, foi condenado a cinco anos e dez meses de prisão pelo crime, uma pena considerada normal pela maioria dos criminalistas. Anormal foi a celeridade e os meios empregues no processo: da investigação à sentença passaram-se seis meses quando o tempo médio é de quatro anos e meio. Para a rapidez processual contribuiu o pedido pessoal de Temer ao então secretário de segurança de São Paulo, estado onde o crime ocorreu, que imediatamente envolveu 33 polícias na operação, entre delegados, investigadores e peritos, e escutas telefónicas em tempo real, medidas semelhantes à da investigação no ano anterior de uma chacina de 17 pessoas em Osasco, nos arredores de São Paulo.
O secretário de Segurança de São Paulo acusado pela oposição e por colunistas de excesso de diligência na abordagem ao caso é Alexandre de Moraes, que dias após a detenção do hacker seria convidado para ministro da Justiça de Temer e nas últimas semanas foi indicado pelo presidente para ocupar cargo de revisor da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal.
Marcela Temer, que foi apresentada como "bela, recatada e do lar" num controverso perfil na revista Veja logo após a posse de Temer, não tem sido notícia apenas por causa do caso do hacker. Mais interventiva do que se supunha após aquele perfil, foi nomeada embaixadora do projeto Criança Feliz, que prevê atenção especial a grávidas e a crianças de até três anos beneficiárias do programa Bolsa Família, e liderado encontros com as primeiras-damas de cada um dos 26 estados brasileiros.
O Palácio do Planalto aposta nela para melhorar a imagem do marido, e presidente, ainda com taxas de aprovação abaixo dos 20%.