O Papa Francisco fora aconselhado pelos colaboradores mais próximos e pelo representante da hierarquia da igreja birmanesa, cardeal Charles Bo, a não recorrer ao vocábulo "rohingya" quando abordasse a questão da minoria muçulmana perseguida neste país. E não o fez na intervenção proferida ontem em Naypyidaw, falando ao lado da governante de facto da Birmânia, Aung San Suu Kyi. Mas a questão esteve, inequivocamente, presente no centro dos discursos de ambos..Ouça-se o Papa Francisco: "O futuro de Myanmar [designação oficial do país] tem de ser a paz, uma paz baseada no respeito pela dignidade e os direitos de cada membro da sociedade, respeito por cada grupo étnico e sua identidade (...), respeito por uma ordem democrática que permita a cada indivíduo e a cada grupo - sem exclusão alguma - dar a sua legítima contribuição para o bem comum". E Suu Kyi: "À medida que resolvemos as questões sociais, económicas e políticas que minaram o entendimento, a harmonia e a cooperação entre as diferentes comunidades de Rakhine [o estado onde está fixada a grande maioria dos rohingya], o apoio do nosso povo e dos bons amigos que desejam o nosso sucesso tem sido inestimável". Suu Kyi afirmou que o fim último da sua atuação é "a tolerância, a segurança e a proteção dos direitos de todos"..Falando em italiano, naquela que é a primeira visita de sempre de um Papa à Birmânia, Francisco lamentou ainda todas as vítimas de "conflitos e confrontos" e mostrou apoio aos esforços de Suu Kyi em prol da "reconciliação", salientando que essa deve ser a "prioridade", com "todas as comunidades religiosas" a terem "um papel privilegiado a desempenhar" no processo..A utilização do vocábulo "rohingya" (usado pelos muçulmanos de Rakhine para se designarem a si próprios) representaria a identificação do Papa com este grupo étnico-religioso, que perdeu o direito à nacionalidade birmanesa no início dos anos 80..Em Roma, e em mais de uma ocasião, Francisco usou o termo - "os nossos irmãos e irmãs rohingya vítimas de perseguições e violência" - para se referir à presente crise..Desde agosto que mais de 600 mil rohingya fugiram do estado de Rakhine (no Norte do país) para o vizinho Bangladesh, perseguidos por milícias nacionalistas budistas e pelas forças de segurança, que acusam os muçulmanos de ações terroristas. Nações Unidas, Estados Unidos, União Europeia e ONG de direitos humanos, como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, têm denunciado a perseguição aos rohingya como "limpeza étnica". E, em particular as ONG têm criticado Suu Kyi por aquilo que classificam como cumplicidade ou inação..A intervenção pública do Papa, que hoje celebra uma missa campal em Rangum antes de seguir para o Bangladesh, foi "cuidadosamente ponderada", segundo Richard Horsey, um analista da política birmanesa baseado neste país ouvido pela AFP. Para o mesmo analista, o teor das palavras em público de Francisco, permitir-lhe-ia, "provavelmente, ser mais direto nos encontros privados". Além de Suu Kyi, que desempenha funções de conselheira de Estado (na prática, chefe do governo) e de responsável pela diplomacia birmanesa, e do presidente Htin Kyaw (colaborador de longa data da primeira), o Papa reuniu-se com o responsável máximo das forças armadas, general Min Aung Hlaing. Estas mantêm uma espécie de tutela sobre o processo político no país..No final do encontro entre o Papa e o general Hlaing, o gabinete deste colocou uma mensagem nas redes sociais, referindo que o responsável das forças armadas é favorável à "paz entre religiões". É ainda garantido não haver discriminação étnica ou religiosa na Birmânia..A antecipar a chegada amanhã do Papa ao Bangladesh, o governo de Daca anunciou a criação de um campo numa das ilhas da Baía de Bengala para acolher cerca de cem mil rohingya. A medida foi logo criticada por ONG, por ser um território atreito a inundações.