Khmers vermelhos: de guerrilha a regime sanguinário apoiado por Pequim e até pelos EUA
O interrogador-chefe do khmer vermelho Kaing Guek Eav, mais conhecido pelo seu pseudónimo Duch, morreu nesta quarta-feira na capital do Camboja aos 77 anos. O antigo professor dirigiu uma famigerada prisão para o regime, tendo supervisionado a morte de cerca de 15 mil pessoas - uma fração dos dois milhões estimados que morreram às mãos do regime.
O ultramaoista khmer vermelho governou o Camboja de 1975 a 1979 sob a liderança do "Irmão Número Um" Pol Pot - um carismático intelectual que estudou em França.
Hoje, o nome de Pol Pot é sinónimo de terror e genocídio, e a sua tentativa de criar uma utopia agrária é culpada pela morte de cerca de dois milhões de cambojanos.
O movimento começou nas selvas do nordeste do reino, onde Pol Pot recrutou apoiantes e travou uma guerrilha contra os governos repressivos do Camboja da época.
A 17 de abril de 1975, as tropas dos Khmers Vermelhos marcharam para Phnom Penh, derrubando a ditadura do general Lon Nol - que tinha protagonizado um golpe de Estado contra o então príncipe Norodom Sihanouk. Milhões de residentes de Phnom Penh foram deslocados para o campo, onde separaram famílias em comunas por todo o país.
Os Khmers Vermelhos exigiam uma lealdade inquestionável a Angkar - o que significa "a organização" na língua khmer, e quaisquer laços com familiares ou amigos considerados "impuros" eram perigosos.
Até mesmo a profunda devoção religiosa dos cambojanos ao budismo foi encarada com desconfiança pelos dirigentes, que perseguiram os monges e destruíram os templos por todo o reino.
Em nome de Angkar, os cambojanos eram obrigados a trabalhar em campos de arroz em condições extremas, a trabalhar em fábricas e a supervisionar as execuções em massa daqueles considerados "impuros".
Intelectuais, antigos funcionários públicos e membros da polícia e das forças armadas caíram frequentemente nesta categoria, enquanto as minorias étnicas - incluindo vietnamitas e muçulmanos cham - foram também sistematicamente visadas.
Perto do fim do regime, os Khmers Vermelhos devoraram os seus próprios khmers com repetidas purgas - impulsionados pela paranoia da liderança de que os inimigos da revolução estavam escondidos no interior do regime.
O maior apoiante do regime foi a China, que prometeu mil milhões de dólares em ajuda a Pol Pot, segundo Sebastian Strangio, autor de In the Dragon's Shadow e Hun Sen's Cambodia.
Os EUA também ajudaram indiretamente a reforçar as fileiras dos Khmers Vermelhos, uma vez que os bombardeamentos no Vietname, no Camboja e em Laos geraram ressentimento entre os habitantes locais contra a superpotência ocidental.
Depois de os Khmers Vermelhos terem sido expulsos pelas tropas apoiadas pelo Vietname em 1979, receberam algum apoio dos EUA, que os viram como um entrave à Hanói comunista.
O líder mais antigo da Ásia, Hun Sen, subiu nas fileiras dos Khmers Vermelhos para se tornar comandante de batalhão antes de fugir do país para o Vietname, em 1977, para escapar a uma das muitas purgas internas.
Os livros de história local minimizam o papel que desempenhou durante o domínio dos Khmers Vermelhos, mas atribuem-lhe o mérito de liderar as tropas vietnamitas no país para expulsar Pol Pot do poder em janeiro de 1979.
Tentativas de investigar o papel de outros indivíduos foram restringidas pelo atual Governo, que contém vários antigos membros do Khmer Vermelho.
Hun Sen disse que queria um tribunal apoiado pela ONU para investigar apenas o nível superior do regime.
Lançado em 2006, o tribunal - que custa centenas de milhões de dólares - condenou até agora apenas três pessoas.
Duch foi o primeiro membro do Khmer Vermelho a enfrentar o julgamento e o seu testemunho revelou aspetos do regime secreto que nunca foram conhecidos do público. Foi condenado a prisão perpétua em 2012.
Os outros dois condenados foram Nuon Chea, "Irmão Número Dois" e ideólogo principal do regime - que morreu no ano passado - e Khieu Samphan, o antigo chefe de estado que serviu como rosto público do Khmer Vermelho para o mundo.
Houve críticas à ingerência do Governo e ao ritmo dos trâmites. Os processos judiciais são "complexos, politizado e, em muitos aspetos, condenados ao fracasso", disse Robert Carmichael, autor de When the Clouds Fell from the Sky, que cita o julgamento de Duch.
Mas o seu julgamento e condenação "foram vistos como benéficos" devido aos pormenores revelados sobre o regime, disse à AFP.