ONU denuncia limpeza étnica que levou a fuga de 300 mil rohingya
Está em curso uma limpeza étnica na Birmânia, nome pela qual é mais conhecido o país do Sudeste Asiático formalmente designado como República da União de Myanmar. A acusação foi feita ontem pelo alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra"ad al-Hussein, que falava na 36.ª sessão do Conselho dos Direitos Humanos em Genebra.
A atuação das forças de segurança birmanesas contra a minoria étnica muçulmana dos rohingya é "exemplo perfeito de uma situação de limpeza étnica", declarou Al-Hussein, que fazia um balanço sobre o estado dos Direitos Humanos no mundo. Está-se perante uma "brutal operação de segurança" que levou à fuga da Birmânia, em menos de três semanas, de mais de 270 mil elementos daquela etnia para o vizinho Bangladesh, encontrando-se outros 30 mil retidos na fronteira comum deste país com a União de Myanmar. Uma Organização Não Governamental (ONG) que atua na região, o Inter Group Coordination Group, citado pela Reuters, indicava que a presente crise já provocou mais de 313 mil refugiados.
O pretexto para a atuação das forças do governo de Naypyidaw foi uma série de 30 ataques a esquadras da polícia e a uma base do exército, na segunda quinzena de agosto, levadas a cabo por um grupo muçulmano, o Exército de Salvação dos Rohingya de Arakan (ESRA), nome pelo qual é conhecido entre esta etnia o estado de Rakhine, onde vive a grande maioria.
O ESRA justificou estas ações com a repressão policial que se tem feito sentir em Rakhine desde a morte de nove guardas fronteiriços em outubro de 2016. Desde então, o estado vive em tensão permanente, sucedendo-se as acusações de diferentes ONG de excessos das forças de segurança, incluindo execuções no local, violações e destruição de casas e campos de cultivo dos rohingya.
O ESRA, que até março último se denominava Movimento de Fé Al-Yaqeen, anunciou então que passaria a atuar em "defesa e proteção da comunidade rohingya". O grupo declarou no final da passada semana uma trégua em Rakhine para permitir a atuação das agências humanitárias. O ESRA é considerado uma organização terrorista pelas autoridades de Naypyidaw. As organizações de direitos humanos criticam algumas das suas ações, como a execução de supostos informadores das forças de segurança assim como impedir os civis, em especial adultos do sexo masculino, de abandonarem as localidades. O ESRA, segundo o International Crisis Group, seria apoiado pela comunidade rohingya residente na Arábia Saudita.
Na sua intervenção de ontem, Al-Hussein explicou ter tomado conhecimento de "imagens de satélite" em que se veem "as forças de segurança e milícias locais a queimarem aldeamentos de rohingyas". Informações sustentadas por diferentes relatos em que se dá também conta de "execuções sumárias, e inclusive o disparo sobre civis em fuga".
Não é a primeira vez que responsáveis da ONU e ONG acusam o governo birmanês, hoje efetivamente dirigido pela Nobel da Paz de 1991, Aung San Suu Kyi, de organizar campanhas de limpeza étnica contra os rohingya. O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou recentemente para o "risco" de limpeza étnica e de uma "catástrofe humanitária", a manter-se o atual quadro de violência. Um quadro que Al-Hussein considerou, na intervenção de ontem, resultado de "décadas de persistentes e sistemáticas violações dos direitos humanos", que têm alimentado "a violência extremista", referência ao ESRA.
A atuação de Suu Kyi e as suas palavras sobre a presente situação têm sido alvo de críticas generalizadas. Ainda recentemente, mencionou "um icebergue de desinformação" sobre a questão. Referindo-se à situação no estado de Rakhine, limitou-se a declarar que está a ser feito "o melhor possível para garantir a todos a proteção da lei". E ainda no domingo, o seu porta-voz, Zaw Htay, recusou qualquer hipótese de negociar com o ESRA e menorizou a dimensão dos acontecimentos no estado de Rakhine.
Um outro Nobel da Paz, o Dalai Lama, juntou-se ontem a outros detentores do prémio (como Malala Yousafzai e o bispo sul-africano Desmond Tutu) que têm criticado o comportamento de Suu Kyi na crise e pedido a sua intervenção.
Além do Bangladesh, onde estão refugiados um total de 625 mil, os rohingya estão ainda dispersos pelo Paquistão (cerca de 350 mil), Arábia Saudita (200 mil), Índia (40 mil) e Emirados Árabes Unidos (dez mil), referia ontem a Al Jazeera.
Quem são os rohingya?
São um grupo étnico, maioritariamente muçulmano, fixado na Birmânia, mas que não é reconhecido como tal. Vivem concentrados num dos mais pobres estados do país, Rakhine, que não podem abandonar sem autorização oficial. Foram privados da cidadania da Birmânia em 1982, o que os torna apátridas. Atualmente, mais de 1,1 milhões de rohingya vivem neste país.
De onde são provenientes?
Há registo da presença de muçulmanos na região desde o século XII. Essa presença acentuou-se a partir do século XIX, durante o governo colonial britânico, com a migração em larga escala de mão-de-obra proveniente do subcontinente indiano. Após a independência da Birmânia, em 1948, o país considerou a migração ilegal.
Por que é que não são reconhecidos?
Com base no conceito de ter sido ilegal a migração de populações muçulmanas do subcontinente indiano, o novo país não reconheceu os rohingya como um dos 135 grupos étnicos cujos membros são considerados birmaneses. Apenas admitiu que pessoas cujas famílias vivessem há, pelo menos, duas gerações no país pudessem pedir a nacionalidade birmanesa. Mas não necessariamente obtê-la.
Quais as raízes do conflito?
São de ordem religiosa e social. Sempre houve tensões na região entre muçulmanos e budistas, religião maioritária na Birmânia. A presença de mão-de-obra estrangeira é também encarada negativamente pelas outras etnias.
Como atua o governo da Birmânia?
Restringe o acesso dos rohingya à educação e saúde e existem quotas para a entrada destes em certas profissões e cargos públicos. A ONU e ONG de direitos humanos consideram que existe uma perseguição sistemática dos rohingya desde os anos 70.
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