O cardeal Pell, a "testemunha J" e a absolvição por abusos sexuais de menores

Após 405 dias preso, o antigo conselheiro do Papa Francisco viu o Supremo Tribunal da Austrália revogar a sua condenação. A sua alegada vítima diz que o caso não o define e pede às outras vítimas para não desistirem de falar. George Pell deverá enfrentar ainda processos no civil.

O cardeal australiano George Pell, o mais alto cargo da Igreja Católica condenado por abuso sexual de menores, viu o Supremo Tribunal da Austrália revogar a sua sentença na terça-feira e já se encontra em liberdade. Pell, que sempre disse estar inocente, foi condenado graças à "testemunha J", mas os advogados alegaram que o júri tinha ignorado outras provas e os sete juízes decidiram por unanimidade a seu favor, considerando ser possível que uma pessoa inocente tenha sido condenada.

Pell, que nasceu em Ballarat (Victoria) em 1941, subiu dentro da Igreja Católica australiana até se tornar arcebispo de Melbourne e depois de Sidney. Em 2013, foi chamado para o Conselho de Cardeais para aconselhar o novo Papa, Francisco, tornando-se um ano depois na prática tesoureiro do Vaticano. Era considerado por muitos como estando entre os favoritos para se tornar Papa um dia.

Apesar de ter sido acusado de abuso sexual de menores só em 2017, já desde a década de 1990 que era criticado pela resposta que deu, enquanto membro da hierarquia da Igreja Católica australiana, a este tipo de denúncia. Foi Pell que esteve por detrás da chamada Resposta de Melbourne, que ofereceu apoio às vítimas, mas limitou o valor das compensações que podiam receber. Pell foi também amigo do padre Gerald Ridsdale, acusado de abusos de mais de 60 crianças.

Acusação formal após anos de investigação

Depois de anos de investigações que não deram em nada, Pell foi formalmente acusado pela polícia em junho de 2017. Suspende então as funções no Vaticano e regressa à Austrália para se defender. Muitas denúncias foram caindo pelo caminho, incluindo algumas referentes ao seu tempo como padre em Ballarat, nos anos 1970, restando apenas a que envolvia os alegados abusos que teriam ocorrido em 1996, quando era arcebispo de Melbourne.

Depois de um primeiro julgamento que não chegou a um veredicto, foi novamente julgado a partir de novembro de 2018. A 11 de dezembro, foi considerado culpado de cinco acusações por um júri: uma de penetração sexual de uma criança com menos de 16 anos e quatro de ataque indecente a uma criança com menos de 16 anos.

As vítimas terão sido dois rapazes do coro, então com 13 anos, tendo um deles morrido em 2014, vítima de overdose. O outro é conhecido apenas pelo nome de código "testemunha J", tendo dito numa audiência à porta fechada como Pell abusou dele e do amigo. A condenação foi confirmada no tribunal de recurso, com os juízes divididos, com Pell a ser sentenciado a seis anos de prisão.

Nesta terça-feira, e após ter passado 405 dias na prisão, o Supremo ordenou a libertação do cardeal, alegando que não ficou provada, sem sombra de dúvidas, a sua culpa. O cardeal sempre proclamou a sua inocência e, quando libertado, defendeu que uma "injustiça séria" tinha sido corrigida e disse não guardar "rancor" do seu acusador.

"O meu julgamento não era um referendo à Igreja Católica nem um referendo à forma como as autoridades da Igreja na Austrália responderam ao crime de pedofilia na Igreja. O objetivo era saber se eu tinha ou não cometido estes crimes horríveis e eu não tinha", afirmou Pell.

"Este caso não me define"

A "testemunha J" disse respeitar a decisão do Supremo de libertar Pell, deixando contudo uma palavra de ânimo para outras vítimas de abuso, para que não se sintam desencorajados. "É difícil num caso de abuso sexual de menores cumprir com a exigência de um tribunal para provar que o crime aconteceu para lá qualquer sombra de dúvida", disse o homem, numa declaração divulgada pela advogada.

Apesar de dizer compreender a necessidade de estas exigência da justiça, lembrou que "o preço que pagámos por fazer pender o sistema a favor do arguido é que muitos crimes sexuais contra crianças ficam impunes".

A testemunha J disse ainda que "a maior parte das pessoas reconhecem a verdade quando a ouvem", apelando para que as vítimas não tenham medo de falar, explicando que foi apoiado pela polícia e pelos procuradores.

Mas mostrou-se aliviado por o processo ter acabado: "Este caso não me define. Sou um homem que está a tentar fazer o melhor para ser um adorável pai, parceiro, filho, irmão e amigo. Estou a fazer o melhor para encontrar e manter a alegria na minha vida."

O Supremo Tribunal resolveu a favor de Pell depois de os advogados alegarem que todo o caso estava demasiado centrado nas declarações da "testemunha J", tendo outras provas sido ignoradas. Os sete juízes decidiram unanimemente a favor do cardeal, que era um dos braços direitos do Papa Francisco até este escândalo rebentar.

Não é o fim dos problemas na justiça

Apesar de ter sido ilibado, Pell não se livra dos tribunais, onde ainda pode responder no civil pelos abusos. O pai da sua alegada vítima, que morreu em 2014, pondera apresentar queixa contra o cardeal, por forma a conseguir indemnização.

A advogada Lisa Flynn, que representa este pai, disse que o cliente está "enjoado" e "totalmente incrédulo" com a decisão do Supremo Tribunal. "Ele está a ter dificuldade em compreender a decisão. Diz que já não tem fé no sistema judicial do nosso país", indicou aos jornalistas.

"Está furioso porque o homem que acredita ser responsável por abusar sexualmente do seu próprio filho foi condenado por unanimidade por um júri, só para agora ter a decisão revogada", acrescentou na terça-feira.

Apesar de ter sido afastado do grupo de conselheiros do Papa Francisco e dos cargos que ocupava no Vaticano, Pell não foi afastado da Igreja e desconhece-se que funções poderá estar a desempenhar. Também não se sabe se a Congregação para a Doutrina da Fé irá continuar com a sua própria investigação contra o cardeal.

Na terça-feira, após se conhecer a decisão do Supremo australiano, o Papa falou contra as sentenças "injustas" contra pessoas "inocentes", sem mencionar Pell. "Nestes dias de Quaresma, temos assistido à perseguição que Jesus sofreu e como Ele foi julgado ferozmente, apesar de Ele ser inocente", escreveu no Twitter. "Vamos rezar juntos por todas essas pessoas que sofrem por causa de uma sentença injusta", acrescentou.

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