Municipais no Brasil. Um candidato é assassinado a cada três dias

A facada em Jair Bolsonaro ou a execução de Marielle Franco são a ponta do icebergue da violência eleitoral no país. Já são 16 homicídios desde a pré-campanha e perto de 80 casos em 2020. E não estão contabilizados os atentados mal sucedidos
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No final de setembro, Cássio Remis, candidato a vereador do município de Patrocínio, em Minas Gerais, mostrava ao vivo numa gravação por telemóvel as obras executadas com dinheiro público no passeio em frente à sede da campanha de reeleição do atual prefeito Deiró Marra. O secretário de obras da cidade, Jorge Marra, que é irmão do prefeito, não gostou, dirigiu-se ao local e arrancou o telemóvel das mãos da pessoa que filmava Remis.

Indignado, o vereador deslocou-se em seguida ao escritório de Jorge Marra para recuperar o aparelho. O resto foi filmado pelas câmaras de vigilância no local: um tumulto generalizado e o disparo de cinco tiros por Jorge contra Cássio, que morreu de imediato no local.

Em conferência de imprensa horas depois do crime, o prefeito Deiró Marra decretou luto na cidade e anunciou a demissão do irmão, que esteve foragido três dias. Neste momento, aguarda julgamento.

A execução de Cássio Remis, do PSDB, de centro-direita, às mãos de Jorge Marra, do DEM, também de centro-direita, é o caso mais emblemático de todos os 16 assassinatos durante a campanha eleitoral para as municipais de 15 de novembro no Brasil porque foi filmado.

Mas desde 17 de setembro, data do início oficial do período de pré-campanha eleitoral, já foram mortos mais 15 candidatos aos cargos de prefeito (presidente da câmara) ou vereador, além de Remis.

Dá, segundo o estudo do politólogo Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, revelado pelo jornal Folha de S. Paulo, uma média de um assassinato com fins eleitorais a cada três dias. Se o período em análise for o ano de 2020, o número sobe para 80. Ou para 76, de acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo que há sete anos soma casos de assassinatos de agentes políticos ocorridos.

O jornal não contabiliza casos passionais ou mortes de políticos na sequência de assaltos -apenas homicídios para garantir espaço na máquina pública, vingar a morte de um aliado ou tirar do jogo uma testemunha.

Entretanto, nenhum dos estudos, publicados dias 28 de outubro e 4 de novembro na imprensa, inclui a execução com um tiro na cabeça de Valmir Tenório, do PT, de centro-esquerda, na cidade de Paraty, estado do Rio de Janeiro, na última quarta-feira. O assassino do candidato a vereador ainda está a monte.

No mesmo Rio de Janeiro, dois dias antes, Zico Bacana, do Podemos, partido ligado ao grupo de forças parlamentares sem compromisso ideológico apelidado de "centrão", foi baleado durante evento de campanha num bar da zona norte da cidade. Duas pessoas morreram e três ficaram feridas, entre os quais o próprio candidato à reeleição como vereador, atingido só de raspão na cabeça. Como Bacana saiu pelo próprio pé e uma ligadura na cabeça do hospital nem entra nas estatísticas, como todos os outros alvos de atentados mal-sucedidos .

A polícia acredita que traficantes de droga, em disputa de território por um bairro do Rio com Bacana, ligado às milícias (máfias cariocas), estão por trás dos disparos.

Longe das grandes cidades, a tensão e a sensação de impunidade são ainda mais elevados - "apenas 10% das mortes violentas são resolvidas no Brasil", diz Pablo Nunes.

Adriano Magalhães, advogado de 39 anos candidato a vereador pelo Solidariedade, também um partido do chamado "centrão", comia uma sanduíche na rua quando um homem saiu de um carro e o matou a tiro, no dia 7 de outubro.

Em São José da Coroa Grande, Pernambuco, o candidato a vereador Valter Silva, do DEM, seguia de moto pelas ruas da cidade quando foi atingido por disparos de uma pistola de calibre 360, a 24 de setembro.

Evangelista Jerónimo, candidato a vereador pelo PSB, de centro-esquerda, foi encontrado morto no dia seguinte dentro de casa vítima de golpes de faca. Concorria a vereador de Caucaia, cidade na grande Fortaleza.

Em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, dois crimes no intervalo de uma semana no início de outubro. Mauro Rocha, do PTC, de centro-direita, e Domingos Cabral, do DEM, foram mortos. O primeiro enquanto fazia campanha num bairro, o segundo num bar, por um grupo de encapuzados.

João Carraro, do PDT, de centro-esquerda, fazia campanha casa a casa quando foi surpreendido com a chegada de "um carro branco", de acordo com testemunhas, em Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul. Da viatura partiram disparos que o vitimaram fatalmente.

As emboscadas em locais públicos são o método mais comum dos assassinos de candidatos. Os autores, quando descobertos, são sobretudo relacionados à ação das milícias nas periferias das grandes cidades e a grupos de matadores profissionais no interior. A ausência do poder público no combate à violência política ajuda à proliferação de casos.

Na maioria dos casos, os assassinos escapam impunes. Crimes resolvidos, se não levarmos em consideração teorias da conspiração improváveis, como o atentado à faca sofrido por Jair Bolsonaro em Juiz de Fora ainda enquanto candidato à eleição presidencial de 2018 por obra do doente psiquiátrico Adélio Bispo, são a exceção.

O mais comum são investigações que perduram no tempo, como a que vitimou a vereadora carioca Marielle Franco (e o motorista Anderson Gomes) meses antes - os supostos autores materiais estão presos mas os morais seguem à solta.

Os crimes, como o de Marielle, entretanto, não cessam após a ida às urnas. Segundo o estudo de O Estado de S. Paulo, uma segunda onda de violência costuma ocorrer no ano posterior ao das disputas políticas. "É quando agiotas começam a cobrar o dinheiro emprestado a candidatos, com juros extorsivos. Muitas vezes morrem o eleito, que se recusa a dar cargos e destinar verbas para saldar a dívida, e o perdedor endividado", explica o levantamento.

Só um em cada dez crimes violentos são resolvidos no Brasil, o que gera sensação de impunidade

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