Morte de Floyd. Manifestantes desafiam recolher obrigatório na 8ª noite de protestos
Os norte-americanos voltaram a sair às ruas e a desafiar o recolher obrigatório em várias cidades para protestar, pela oitava noite consecutiva, contra a morte de George Floyd na sequência de uma violenta detenção policial, na semana passada, em Minneapolis. Manifestações pacificas e outras marcadas por confrontos com a polícia e pilhagens, enquanto o presidente norte-americano, Donald Trump, rejeitava as críticas do uso da força para interromper uma manifestação pacífica.
A tensão entre manifestantes e a polícia prolongou-se pela noite dentro em várias cidades norte-americanas, de Nova Iorque a Los Angeles.
Houve, no entanto, menos relatos de pilhagens e violência que marcaram as manifestações nas noites anteriores.
Em mais de 150 cidades norte-americanas repetiram-se os protestos, mas as imagens de violência foram mais esparsas, apesar de as autoridades terem elevado para mais de 9.000 o número de pessoas detidas por distúrbios nas manifestações.
Dezenas de milhares reuniram-se para prestar uma homenagem em Houston, a cidade natal de Floyd, que cresceu na cidade do Texas. "Hoje é sobre a família de George Floyd. Queremos que eles saibam que George não morreu em vão", disse o o presidente da câmara de Houston, Sylvester Turner, a cerca de 60 mil pessoas.
De lágrimas no rosto, Roxie Washington, a mãe da filha de seis anos de Floyd, disse em conferência de imprensa que queria "justiça por ele, porque ele era bom. Não importa o que pensem, ele era bom."
Em Nova Iorque, que na terça-feira estendeu o primeiro recolher obrigatório desde a Segunda Guerra Mundial para toda a semana, os jornalistas da AFP viram centenas a recusaram-se a voltar para casa depois das 20:00, permanecendo na rua a caminhar po Manhattan e Brooklyn.
Os manifestantes que tentavam atravessar a ponte de Manhattan ficaram presos durante um longo período pela polícia, que estava posicionada em ambos os lados, mas acabaram por, finalmente, terem autorização para regressar a Brooklyn, de acordo com um jornalista do The New York Times.
O autarca de Nova Iorque, Bill de Blasio, disse à CNN que tudo estava "muito mais calmo", um dia depois de várias lojas de luxo de Manhattan terem sido alvo de pilhagens.
O estado do Minnesota apresentou queixa por violação dos direitos civis no âmbito das circunstâncias da morte de George Floyd e avançou com uma investigação ao Departamento de Polícia de Minneapolis por possíveis "práticas discriminatórias sistémicas" que duram há 10 anos, indicou o governador Tim Walz. no Twitter.
Já o ex-presidente George W. Bush pediu aos EUA que analisem os "erros trágicos" e "ouçam as vozes de tantos que estão a sofrer".
Em Los Angeles, uma das dezenas de cidades atingidas pelos distúrbios, agentes da polícia e o autarca Eric Garcetti ajoelharam-se num ato simbólico de solidariedade quando se depararam com manifestantes liderados por grupos de cristãos afro-americanos.
"Um rosto negro não deve ser condenado a morrer, a ser um sem-abrigo, a adoecer" a ficar sem emprego e educação ou ter baixa escolariedade, disse Garcetti, convidando os líderes do grupo de afro-americanos a irem com ele para a câmara municipal. Mas os manifestantes reuniram-se no exterior da residência de Garcetti. Um jornalista da AFP testemunhou que um grupo de pelo menos 200 pessoas recusou-se a dispersar e como consequência foi preso.
Mais de três mil pessoas foram presas em Los Angeles desde sexta-feira, quando começaram as manifestações e depois de protestos que resultaram em vandalismo, pilhagens e confrontos com as forças policiais. A Guarda Nacional patrulha várias zonas da cidade desde domingo e há recolhimento obrigatório para todos os cidadãos.
"O vídeo do assassinato brutal de George Floyd mostrou a todos o racismo e a violência policial que os negros vêm sofrendo há décadas", disse à Lusa a brasileira Erika Monteiro, residente na cidade. "O descaso das autoridades gerou muita dor e um sentimento de revolta", afirmou a responsável, que trabalha no setor da aviação e mora nos Estados Unidos há mais de uma década.
Monteiro notou que os protestos contra o racismo foram pacíficos em anos anteriores e sublinhou a iniciativa do jogador de futebol americano Colin Kaepernick, que se ajoelhou durante o hino nacional na temporada de 2016/2017. Desde então, nunca mais conseguiu jogar na liga NFL.
"O que acontece é que nada mudou todos esses anos e a morte absurda do George foi só o rastilho", considerou Monteiro, acrescentando que "é inacreditável que passados oito dias de muitos protestos os outros três ex-polícias ainda estão soltos".
Com um cartaz de apoio ao movimento "Black Lives Matter" no seu carro, Erika Monteiro sublinhou que "estão a acontecer muitos protestos pacíficos em todo o país" mas que a situação causada pela pandemia de covid-19 exacerbou os ânimos. "Estamos a entrar no terceiro mês de isolamento social, a tensão vem aumentando e há grupos de pessoas que não estão envolvidas nos protestos que estão a organizar-se para saquear lojas".
Durante terça-feira, as manifestações de milhares de pessoas foram pacíficas e os protestos chegaram a zonas onde ainda não tinham aparecido, como o vale de São Fernando, a norte de Hollywood, sem incidentes.
"Gostaria que os protestos continuassem pacificamente até que os polícias fossem presos", afirmou Erika Monteiro, que pretende juntar-se a algumas das iniciativas previstas na sua zona.
Em Washington, milhares voltaram às ruas na terça-feira para a marcha pacífica "Black Lives Matter".
Horas depois das 19:00, ouviu-se o toque de recolher obrigatório, enquanto tropas da Guarda Nacional ficavam nas imediações da Casa Branca, ao mesmo tempo helicópteros sobrevoavam a zona. Imagens difundidas mostraram a polícia a disparar gás lacrimogéneo após a meia-noite, mas a situação parecia calma no geral.
"Estou cansada, essencialmente, de ter medo da polícia, de não conseguir justiça", disse Jada Wallace à AFP, uma manifestante de 18 anos, que estava nas imediações da Casa Branca. Disse estar pronta para correr o risco de ser presa.
No mesmo local, na segunda-feira, a polícia federal lançou de forma abrupta gás lacrimogéneo e disparou balas de borracha para interromper um protesto não violento, abrindo caminho para Trump passear do lado de fora para uma sessão fotográfica numa igreja histórica danificada na noite anterior.
A atitude do presidente foi condenada por líderes religiosos, rivais políticos.
Mas Trump, que rejeitou o tradicional papel presidencial de conciliador, manifestou alegria no Twitter pela resposta em Washington e acusou a liderança de Nova Iorque - liderada pelo rival Partido Democrata - pela resposta que deu aos protestos.
"Força esmagadora. Dominação ", escreveu Donald Trump, acrescentando:" Washington, DC, foi o lugar mais seguro do mundo na noite passada!"
Mais tarde, opôs-se às críticas em relação à sua ida à igreja, ao facto de posar para as fotos de Bíblia na mão e de ter ordenado às forças de seguranças o uso de gás lacrimogéneo contra um protesto pacífico, antes de se dirigir ao local de culto. "Se os manifestantes estavam tão pacíficos, porque é que eles incendiaram a Igreja na noite anterior? As pessoas gostaram da minha caminhada".
Joe Biden, o candidato democrata que deverá enfrentar Trump nas eleições presidenciais de novembro, denunciou a repressão como abuso de poder e prometeu, se for eleito, combater o "racismo sistémico" no país.
"Donald Trump transformou este país num campo de batalha impulsionado por velhos ressentimentos e novos medos", disse Biden num discurso em Filadélfia,, cidade que também foi atingida pela violência.
A situação que se vive nos EUA também mereceu críticas da Alemanha, Reino Unido e Austrália.
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Heiko Maas, classificou os protestos contra o racismo de "compreensíveis e mais do que legítimos".
"Espero que estes protestos pacíficos não acabem em violência, mas mais do que isso, espero que eles façam a diferença nos Estados Unidos", disse Maas a jornalistas.
Um agente da polícia de Las Vegas estava em "estado grave" na terça-feira após ter sido baleado durante protestos durante a noite. Um homem hispânico armado foi baleado e morto pela polícia depois de levantar a arma num incidente isolado nas imediações aos protestos.
Quatro policiais também foram baleados durante a noite em St. Louis. Nenhuma dos ferimentos representava risco de vida. Mas um capitão de polícia aposentado de St. Louis foi morto a tiro na terça-feira no exterior de uma loja que tinha sido alvo de pilhagens.
A congressista democrata dos Estados Unidos Sheila Jackson Lee declarou na terça-feira que vai apresentar ao Congresso nacional uma lei com o nome de George Floyd para "uma nova cultura para a polícia".
"Na quinta-feira, vou apresentar uma lei revolucionária, que fala de uma nova cultura para a polícia, policiamento, recrutamento, pela 'desescalada' [da violência], acreditação e para garantir que a polícia está como devia estar, para proteger e servir", disse Sheila Jackson Lee no palco de um protesto em Houston, no Texas, cidade onde George Floyd foi criado.
"Vamos honrar [a memória], por isso vou agarrar o desafio de nomear um projeto de lei no Congresso dos Estados Unidos com o nome de George Floyd, para que a sua memória nunca seja esquecida e nunca ignorada", disse a representante do Texas.
Sheila Jackson Lee pediu a colaboração de todo o Congresso dos Estados Unidos, constituído por 535 representantes de todo o país, e do grupo Congressional Black Caucus (Caucus Negro do Congresso, CBC), um grupo de congressistas que defendem os direitos civis de todas as raças e que se opõem ao racismo no país.
O CBC já publicou uma declaração a condenar a brutalidade usada pelos polícias na morte de George Floyd, cujo "crime foi ser um homem negro na América".
"Quantas vezes é que os policiais serão o juiz, júri e carrasco do nosso povo? Quantas vezes serão violados os nossos direitos humanos?", pode ler-se na declaração.
O CBC pediu a investigação por parte do chefe da polícia de Minneapolis, onde a morte ocorreu, e exigiu a detenção e condenação dos quatro agentes envolvidos no caso de George Floyd.
Atenta aos pedidos de reformas da legislação, feitos na terça-feira pelos participantes do protesto de Houston, com leis punitivas do racismo e criação de conselhos independentes para investigar operações policiais, a congressista Sheila Lee Jackson disse que aceita "o desafio".
"Não quero voltar a percorrer este caminho. É tempo de uma revolução para a mudança, pela dignidade de todas as pessoas", disse a legisladora.
Durante o protesto, os eleitos políticos da cidade, congressistas e representantes do 'governo' de Houston receberam apelos para criar legislação contra o racismo, para a reforma de políticas e ainda a criação de conselhos de revisão da comunidade, com poderes de levar a julgamento os membros das autoridades.
Bernard Freeman, 'rapper' conhecido pelo nome artístico Bun B, defendeu, no protesto de terça-feira em Houston, a criação de conselhos de revisão, "para garantir que quando a polícia não se consegue policiar, conselhos independentes possam intervir e responsabilizar, com detenções e acusações judiciais".
George Floyd, um afro-americano de 46 anos, morreu em 25 de maio, em Minneapolis (Minnesota), depois de um polícia branco lhe ter pressionado o pescoço com um joelho durante cerca de oito minutos numa operação de detenção, apesar de Floyd dizer que não conseguia respirar.
Desde a divulgação das imagens nas redes sociais, têm-se sucedido os protestos contra a violência policial e o racismo em dezenas de cidades norte-americanas, algumas das quais foram palco de atos de pilhagem.
A morte de Floyd ocorreu durante a sua detenção por suspeita de ter usado uma nota falsa de 20 dólares (18 euros) numa loja.
Com Lusa