Morales partiu há nove meses, mas o caos está de volta à Bolívia
As eleições presidenciais na Bolívia estão marcadas para o dia 18 de outubro, quase um ano depois do escrutínio que terminou em acusações de fraude eleitoral, protestos violentos e Evo Morales, que estava no poder desde 2006, no exílio. Mas a data não é consensual e os manifestantes voltaram às ruas, com a incerteza a regressar nove meses após a partida do ex-presidente.
Inicialmente marcada para maio, a ida às urnas já tinha sido adiada para 6 de setembro, por causa da pandemia de coronavírus. A decisão de voltar a adiar o escrutínio, alegando que será nesse mês que a pandemia atingirá o pico no país, gerou protestos, com os críticos da presidente interina, a conservadora Jeanine Áñez, a acusarem-na de querer agarrar-se ao poder e evitar o regresso do Movimento para o Socialismo (MAS), de Morales, à presidência.
Desde a Argentina, onde se exilou, Morales continua a dar cartas, mas os apelos que tem feito para que os apoiantes aceitem a nova data eleitoral ainda não tiveram reflexo nas ruas. Só algumas das 142 barricadas, erguidas na sua maioria por indígenas e camponeses apoiantes do ex-presidente, foram levantadas, apesar dos problemas que têm gerado até no combate ao coronavírus -- há quase cem mil casos e quatro mil mortes confirmadas no país.
"Há companheiros que dizem que pelo menos devia ser a 4 ou 11 de outubro, mas não a 18. Eu pergunto-me: porquê estar a lutar por uma semana? Acho que não tem sentido esta posição. Por duas ou três semanas não vamos causar problemas", disse num encontro com jovens, através do Facebook, na passada quarta-feira.
E deixou a nota: "O governo não quer que se resolvam os bloqueios para continuar a culpar-nos da crise." A procuradoria boliviana já aceitou uma denúncia por genocídio, terrorismo e atentado à saúde pública contra Morales e os candidatos à presidência e vice-presidência do MAS, por incentivar os bloqueios que obrigaram o governo a recorrer a aviões para transportar o oxigénio necessário para os doentes com covid-19.
Dias antes, tinha pedido no Twitter: "Não devemos cair nas provocações que nos querem levar à violência. Só com o povo no poder democrática e pacificamente poderemos resolver a crise e isso significa eleições já, com data definitiva e inamovível".
Isso mesmo já garantiam as duas câmaras do Congresso da Bolívia, controladas pelo MAS, e o Supremo Tribunal Eleitoral. As primeiras aprovaram uma lei que estabelece que as eleições têm que ocorrer o mais tardar até 18 de outubro. O segundo aprovou por unanimidade uma resolução que confirma como "final, inamovível e inadiável" essa data para a realização do escrutínio.
>No domingo, Morales alertava: "A Bolívia vive momentos difíceis. Os dirigentes e as bases sociais mobilizados devem escolher responsavelmente entre a renúncia de Áñez, que adiará ainda mais o nosso regresso à democracia, ou eleições já com a garantia das Nações Unidas."
Menos de um mês depois de chegar à presidência interina, com a responsabilidade de convocar novas eleições o mais rapidamente possível, Áñez deixou claro que não seria candidata nem apoiaria nenhum dos candidatos. Contudo, a 24 de janeiro, anunciou a sua candidatura.
Morales chegou às eleições de outubro preparado para vencer um quarto mandato. O ex-líder cocalero (produtores de folha de coca), no poder desde 2006, tinha alterado a Constituição em 2009, estabelecendo como limite os dois mandatos presidenciais. O primeiro não contava para as contas, sendo reeleito em 2010 e 2014.
Em 2016, os apoiantes do presidente procuraram, através de um referendo, voltar a alterar a lei para permitir que Morales voltasse a ser candidato em 2019. Contudo, pela margem mínima (51.3% contra 48.7%, uma diferença de 135 mil votos), a proposta foi rejeitada. Isso não travou o presidente, que recorreu ao Tribunal Constitucional para alegar que impedir a sua candidatura era "uma violação dos seus direitos humanos". Um ano depois, este tribunal concordou.
Nesse sentido, Morales já estava debaixo de fogo da oposição ainda antes das eleições, já que a sua candidatura não era por eles considerada válida. E tudo piorou na noite eleitoral.
O Supremo Tribunal Eleitoral suspendeu a contagem rápida dos votos quando já tinham sido contabilizados 83% e a tendência parecia apontar para uma segunda volta entre Morales e Mesa. A lei estabelece que, para vencer à primeira volta, um candidato tem que ter pelo menos 40% dos votos e uma diferença superior a dez pontos percentuais do adversário mais próximo.
No dia seguinte, contudo, com 95% dos votos contabilizados, Morales surgia com a diferença necessária para ganhar à primeira volta. Enquanto o presidente celebrava, a oposição falava de fraude e os bolivianos começaram a mobilizar-se e a protestar. Morales insistiu em que tinha ganho, apelando aos seus apoiantes que defendessem a democracia. Seguiram-se os confrontos, com pelo menos três mortos e centenas de feridos.
Diante da contestação, o presidente aceitou uma auditoria da OEA e os resultados, anunciando a convocação de novas eleições, mas a situação não acalmava e os militares acabaram por fazer um ultimato ao presidente. Morales deixou o país, alegando que o golpe tinha sido consumado.
Em junho, o The New York Times publicou um artigo no qual alega que uma avaliação mais aprofundada dos dados sugere que a análise da OEA de alegada fraude tinha falhas.
>"Olhámos para as provas estatísticas da OEA e encontrámos problemas com os métodos", disse ao jornal Francisco Rodríguez, um economista que ensina Estudos Latino-Americanos na Universidade de Tulane. "Uma vez corrigidos esses problemas, os resultados da OEA caem por terra, não deixando qualquer prova estatística de fraude", acrescentou um dos responsáveis do estudo, deixando contudo claro que a análise foi só aos dados da OEA e que isso não prova que as eleições foram justas.
O relatório da OEA, de cem páginas, foi publicado em dezembro e incluía provas de erros, de irregularidades e de operações maliciosas destinadas a alterar os resultados, lembra o jornal, pelo que a organização concluiu que era impossível validar os resultados eleitorais. A OEA encontrou problemas em 38 mil votos, tendo Morales reclamado vitória por uma margem de 35 mil.
"A questão não é a soma dos números falsos. A questão é se são falsos ou não -- e são", indicou ao The New York Times Gerardo de Icaza, líder da equipa de observadores da OEA.