Um mês de Idai. Maria sepultou filhas mortas pelo ciclone mas já não sabe onde
Maria Jofresse não consegue encontrar as sepulturas das suas duas filhas, apesar de as ter ajudado a cavar com as suas próprias mãos.
As lágrimas caem dos seus olhos negros à medida que se vai recordando do momento em que as meninas foram arrastadas pelas águas lamacentas das cheias.
Demorou quatro dias a encontrar os seus corpos, que foram enterrados no mesmo sítio para onde o ciclone Idai os arrastou, longe do sítio onde viviam.
"Já não sei onde estão", diz esta mãe de 25 anos, secando os olhos com a sua capulana colorida, na aldeia ribeirinha de Cheia. "Não as consigo encontrar".
Na noite da tempestade, Jofresse abrigou-se na casa da sogra com o marido e os filhos, uma bebé de seis meses e uma menina de quatro anos.
"No dia seguinte, o rio junto à aldeia transbordou e a água entrou. A família fugiu, tentando chegar à estrada principal, que fica num ponto mais alto.
Mas a água foi muito rápida. Com medo de se afogarem, a família subiu toda para cima de uma árvore de caju.
Durante 11 horas agarraram-se aos ramos, Jofresse segurava a bebé, enquanto o marido agarrava a menina mais velha.
Às dez da noite, já na escuridão total, as cheias arrancaram as raízes das árvores da terra ensopada, atirando a família para as correntes de lama e separando-a.
Jofresse sobreviveu, conseguindo agarrar-se a outra árvore. No dia seguinte, caminhando pelas águas, agora já estagnadas, encontrou o marido. Juntos foram à procura das crianças.
Na manhã do quarto dia, encontraram o corpo da mais velha. À tarde, o da bebé.
As crianças estão entre os mais de 800 mortos causados pela tempestade e as chuvas fortes em Moçambique, no Zimbabwe e no Malawai.
Depois de cavarem duas pequenas sepulturas, o casal juntou-se a outras famílias no campo para deslocados do ciclone Idai, erguido a alguns quilómetros da sua casa destruída.
"Vamos ficar aqui, porque não há nada para o que regressar", diz Jofresse, sentada num cantinho do campo.
"Podes vir viver comigo", diz o pai, João Jofresse Ngira, tentando distrair a filha do seu sofrimento. Ela não responde.
Esta não é a primeira vez que perde a casa. Em 2000, quando tinha apenas cinco anos, outras cheias igualmente devastadoras destruíram a sua aldeia perto de Mashongo.
O governo mudou a família para outra comunidade, construída para aqueles que não tinham nenhum sítio para onde ir depois da catástrofe.
Ngira mostra à reportagem da Reuters a aldeia, localizada junto ao rio Muda. Ficou conhecida por Cheia "porque foi por causa da água que viemos aqui parar".
A localização foi escolhida porque ficava num ponto alto e em terrenos menos suscetíveis de inundar.
"Era suposto ser seguro", diz ele, junto às ruínas da sua casa de quatro quartos, que o governo o ajudou a construir. Cinco crianças brincam agora com a pilha de tijolos partidos e o cimento estalado.
O destino de Cheia mostra como as alterações climáticas ameaçam sítios que há menos de duas décadas eram considerados seguros.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a catástrofe em Moçambique "é mais um alarme" sobre os perigos do aquecimento global, os quais os cientistas dizem que irão tornar mais frequentes tempestades devastadoras como a do ciclone Idai.
"Desde este desastre, não vimos ninguém do governo, apesar de terem sido eles que nos puseram aqui", constata Ngria.
Questionado sobre se gostaria de se mudar para outro lado, olha para baixo, para os seus ténis amarelos enlameados, antes de responder: "Eu não tenho dinheiro nenhum. É melhor não sonhar".
A Reuters visitou o campo, num domingo, quando a comida estava para ser distribuída. Tinha passado uma semana desde que a última ajuda chegara e as pessoas estavam cheias de fome. Jofresse cancelou a missa em memória das suas duas filhas porque teve medo de já não haver comida quando ela chegasse.
Quando a ajuda chega, finalmente, Jofresse abre o seu cabaz, na sua tenda azul. Contém várias coisas, incluindo fraldas. Ela põem-nas de lado.
* Jornalista da agência Reuters