Lula: "Bolsonaro não respeita a ciência, só a ignorância"
Lula da Silva comparou o Partido dos Trabalhadores (PT), que fundou em 1980, ao Benfica. Em conversa no final da manhã desta quinta-feira com jornalistas da Associação de Correspondentes Estrangeiros de São Paulo, fez uma das suas famosas metáforas futebolísticas usando o clube português e também o Flamengo.
O presidente do Brasil de 2002 a 2010 referia-se a uma eventual união da oposição - mesmo à direita - contra Jair Bolsonaro.
"Não se constrói um consórcio de esquerda sem a presença do PT, o maior partido de esquerda da América Latina. Acho positivo que se escrevam artigos nesse sentido, acho positivo que o [governador do Maranhão pelo Partido Comunista do Brasil] Flávio Dino fale nisso também, porque o Bolsonaro não pensa em emprego, não pensa em salário, não pensa em economia, não pensa no povo, só pensa nos milicianos dele", começou por afirmar.
"Mas não basta ser contra o Bolsonaro. Nós temos que decidir qual a nossa posição em relação à política do [ministro da economia] Paulo Guedes: quem está contra, quem é favorável e porquê; quem é contra a reforma agrária ou a favor do aumento do salário mínimo", prosseguiu.
"Sem o PT não se pode ter esse debate, o PT não tem culpa de ser grande, assim como o Flamengo não tem culpa de ser grande, como o Benfica não tem culpa de ser grande".
E concluiu: "Alianças sempre houve: recordo que em 2002 fui eleito com José Alencar [empresário do Partido Liberal] como vice-presidente, o PT, para governar, aliou-se com forças conservadoras e depois sofremos um golpe dessas pessoas, então uma aliança nesse sentido tem de ser com base em princípios políticos e económicos".
Noutra referência a Portugal ao longo da conversa de mais de duas horas sublinhou que "sempre teve boa relação com o Mário Soares, com o António Guterres, com o Durão Barroso, que é do lado mais conservador, com o José Sócrates".
"NINGUÉM FEZ TANTO QUANTO O PT"
Sobre a política nacional, Lula disse, a propósito de figuras ligadas ao centro-direita, como João Doria, governador de São Paulo, se assumirem como contraponto a Bolsonaro, que não vê tanta diferença entre ambos. "Não acredito que o Doria seja oposição ao governo Bolsonaro, pode ser à pessoa Bolsonaro, não ao projeto, por isso, é que a grande oposição é o PT".
"Doria contra Bolsonaro é fazendeiro contra fazendeiro, empresário contra empresário, já o PT tem lado, governa para todos, mas olha com mais carinho para os pobres".
Para o antigo sindicalista não há motivo para preocupação com as movimentações à direita: segundo ele, o PT chegará a 2022 com candidato e competitivo.
"Como dizia Leonel Brizzola [líder da esquerda brasileira falecido em 2004], no primeiro ano deixa-se governar, depois faz-se oposição, temos de deixar governar, estamos em pandemia, eu, por exemplo, adoraria andar pelo Brasil mas tenho de estar confinado".
Por outro lado, Lula recusa a ideia, muito repetida no Brasil, de que o seu partido deva fazer um mea culpa: "a toda a hora pessoas que não fazem autocrítica querem que o PT faça autocrítica: ninguém em tão pouco tempo na história do Brasil fez tanto como nós fizemos pela inclusão social, fizemos do pobre parte da solução e não parte do problema, colocamos pobre para estudar em universidade e andar de avião e é isso que eles não toleram, a autocrítica que faço é não ter feito ainda mais universidades, não ter aumentado ainda o salário mínimo, o PT não precisa de perdão, precisa é de respeito pelo que fez".
Confrontado é quem vota "contra o PT", o antigo presidente rebateu. "O anti-petismo é grande? Acho graça. Nas três primeiras eleições fomos segundos, depois ganhamos quatro e na última só não ganhamos porque o [Fernando] Haddad foi vítima de fake news, e mesmo assim teve 47 mihões de votos, e porque eu fui impedido de concorrer."
Consciente de que só a vontade popular pode levar o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia a aceitar uns dos quase 50 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, Lula diz que o PT está preparado para esperar por 2022. "Se não houver impeachment, o PT lá estará em 2022 com candidato, se bem que a TV Globo queira dois de direita, dois que pensem como ela, tipo [ex-ministro Sérgio] Moro e Doria, ou [o apresentador da emissora Luciano] Huck e Doria..."
Se, por outro lado, Bolsonaro cair e o vice-presidente Hamilton Mourão herdar a presidência não muda muito, defende o torneiro mecânico de formação que chegou ao Planalto. "Diferença Mourão e Bolsonaro? O Mourão é general, sabe um pouco mais das responsabilidades, e não fala as bobagens do Bolsonaro mas é vice então concorda com ele, os vices pensam o mesmo dos presidentes, a exceção foi o [Michel] Temer com a Dilma (sorri). Tiraram-na há já quatro anos e hoje estamos pior".
Outro obstáculo para o PT é o peso de Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista, de centro-esquerda, terceiro nas eleições de 2018. "O Ciro [Gomes] fala mal do PT e de mim e eu nem respondo. Ele, que foi para Paris após a primeira volta das eleições, agora diz que o PT é que é culpado do Bolsonaro as ter ganho.
"Ele esquece-se que quem quer ganhar a segunda volta das eleições, antes tem de ganhar a primeira e ele não a ganhou, foi o Haddad, que começou com 3% e em 20 dias subiu para 29% que foi para a segunda volta... A estratégia do Ciro é tentar votos da direita mas acho que a direita não confia nele e nem a esquerda. Sou grato ao Ciro, foi meu ministro, e também acho o Flávio Dino ótimo, o governador de Pernambuco [Paulo Cãmara, do Partido Socialista Brasileiro] ótimo mas o PT vai ter candidato..."
"BOLSONARO SÓ RESPEITA A IGNORÂNCIA"
Jair Bolsonaro, sem surpresa, foi um dos alvos preferenciais de Lula, que criticou a ação do presidente na pandemia e não só.
"Estamos a viver uma crise sanitária, económica, política e toda a gente governa, dos estados ao Supremo... O único que não governa é o Bolsonaro (...) O Bolsonaro desprezou a doença no início, no meio e agora. Ele não respeita os médicos nem a ciência, só respeita a sua própria ignorância".
"Se o Brasil tivesse feito o que devia não estaríamos com 90 mil cadáveres, é um genocídio (...) Mas ele resolveu virar médico e até receita remédio, não sei se ele é sócio da fábrica do remédio...".
"Bolsonaro levanta-se de madrugada para começar logo a mentir" e "diz coisas que só ele e os amigos milicianos acreditam".
Para Lula, "o Brasil tem muita experiência política mas tem pouca experiência democrática". "Depois da constituição de 1988, nunca pensei ser possível, mas aconteceu um golpe, contra a Dilma [Rousseff], em nome "da salvação nacional", que resultou num presidente que não conversa com a sociedade, que não conversa com as instituições".
"Mas o povo brasileiro vai consertar isso...". rematou.
"BRASIL É LAMBE BOTAS DOS EUA"
"Quando os brasileiros entenderem que estão ser subjugados aos Estados Unidos, que o Bolsonaro não sabe o que é soberania, só sabe bater continência à bandeira americana e ao [Donald] Trump, embora o Trump já se queira afastar dessa personagem grotesca que o pode prejudicar nas eleições, quando entenderem que em oito anos o PT acabou com a fome, quando entenderem que a economia só cresce quando o pobre tem dinheiro no bolso...".
Numa conversa com jornalistas da imprensa estrangeira Lula dedicou um espaço generoso à política externa.
"O Brasil jogou no lixo o protagonismo e as parcerias que desenvolveu no mundo, pode-se ser amigo dos Estados Unidos sem ser inimigo da Rússia, da China, da Argentina, o último contencioso em que o Brasil se envolveu foi a Guerra do Paraguai [1864 a 1870], hoje ofende a Rússia, a China, a América do Sul, como se os americanos resolvessem os nossos problemas".
"Eu convivi bem com o [George W.] Bush, com o [Barack] Obama mas os americanos, em primeiro lugar pensam neles, em segundo lugar pensam neles, em terceiro lugar pensam neles e se sobrar um tempinho é para pensar neles".
"Depois de ser colónia de Portugal, da Inglaterra, agora querem fazer do Brasil colónia dos Estados Unidos, o Brasil tem complexo de inferioridade em relação aos Estados Unidos", afirmou.
"Mas ninguém gosta de lambe botas e o Bolsonaro e o [ministro das relações exteriores] Ernesto Araújo agem como tal".
Para o antigo presidente, "os Estados Unidos são um fator impeditivo da América do Sul crescer". "Ninguém elegeu os Estados Unidos como xerifes do mundo, é uma vergonha a subserviência do Brasil aos Estados Unidos".
E sobre as eleições americanas foi claro: "Espero que o povo americano tenha a lucidez de não votar no Trump (...) o regresso dos democratas pode dar um alento (...) eu desejo que o Trump perca as eleições".
Outro dos inimigos de Lula, o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, fez a ponte entre os temas Estados Unidos e Operação Lava Jato. "Semprei achei Moro um mentiroso e covarde, manipulado pelo departamento de justiça dos Estados Unidos".
"Se tem uma quadrilha neste país é a task force da Lava Jato (...) Na Lava Jato, se a imprensa investigar, quem delatou, ficou rico", afirmou.
Noutro ponto, sublinhou que "eles queriam que quem fosse envolvido submergisse". Eu não submergi, o [deputado] Aécio Neves sim, não aparece nem em batizado, mas eu não submergi".