Lorde britânico que inventou o Artigo 50.º nunca imaginou um Brexit

É graças ao Artigo 50.º do Tratado de Lisboa que um Estado membro pode pedir para sair da União Europeia. O seu autor, o lorde britânico John Kerr, antigo embaixador do Reino Unido na UE, diz que o criou a pensar na ascensão de ditadores e que, ironia das ironias, nunca imaginou que o seu país se tornasse o primeiro a fazer uso deste mecanismo.
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O Brexit, previsto para 29 de março, ameaça fazer a União Europeia mergulhar numa nova e grave crise. A acontecer, porém, não será inédita e muitos diplomatas, políticos, académicos e jornalistas experimentados sabem disso melhor do que ninguém. John Kerr, lorde britânico, de 76 anos, é um desses diplomatas. Ex-embaixador do Reino Unido na UE, Kerr acompanhou, de perto, toda a crise da chamada Constituição europeia. Que após muitos altos e baixos desembocou no atual Tratado de Lisboa, o qual contém o famoso Artigo 50.º. Este permite a um Estado membro pedir para sair da UE. E Kerr é o seu autor. Só que quando o redigiu estava a pensar em ditadores. Não num Brexit.

"Não me sinto culpado por ter inventado este mecanismo. Sinto-me triste por ser o Reino Unido a usá-lo. Não pensei que o Reino Unido o usasse", admitiu o lorde, também presidente do think tank Centre for European Reform, numa entrevista que deu, em 2017, ao Politico.eu. Kerr, que foi secretário-geral da Convenção Europeia, cuja tarefa foi a de redigir o Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, admitiu que quando idealizou aquele artigo estava a pensar na eventual subida ao poder de ditadores em países europeus.

Assistia-se na altura à entrada do partido de extrema-direita austríaco FPÖ, então liderado por Jörg Haider, no governo. Haider morreu, em 2008, num acidente de carro, mas o cenário governativo de então, que na altura até levou a sanções da UE, repete-se atualmente. O FPÖ, hoje em dia liderado por Heinz-Christian Strache, governa a Áustria num Executivo de coligação com o ÖVP do chanceler Sebastian Kurz.

"Para mim parecia-me bastante provável que um regime ditatorial quisesse [provocar] uma rutura e sair [da UE]. E ter um procedimento que enquadrasse uma rutura era uma coisa muito sensível de se fazer - para evitar um caos legal em torno de uma saída sem qualquer acordo", declarou então Kerr, ao Politico.eu.

Natural de Grantown-on Spey, na Escócia (parte do Reino Unido que votou contra o Brexit no referendo de 23 de junho de 2016), John Kerr trabalhou no serviço diplomático britânico entre 1966 e 2002, servindo primeiros-ministros como Tony Blair (do Labour), John Major (do Partido Conservador), Margaret Thatcher (conservadora), James Callaghan (trabalhista), Harold Wilson (trabalhista) e Edward Heath (conservador).

Trabalhou em países como Rússia, Paquistão ou Estados Unidos, onde foi o embaixador britânico entre 1995 e 1997, tendo antes disso sido Representante do Reino Unido junto das Comunidades Europeias (antecessoras do que é hoje a União Europeia). Esteve em Bruxelas de 1990 a 1995. Quando regressou a Londres, em 1997, foi vice-secretário permanente do Foreign Office e chefe do Serviço Diplomático até 2002. Depois de deixar o governo britânico foi, entre 2002 e 2003, secretário-geral da Convenção Europeia.

No Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, documento produzido por essa convenção, era o Artigo I-60.º que em cinco pontos falava da saída voluntária da União. Este tratado foi submetido a referendo, em França e Holanda, tendo sido chumbado em ambos os países. A 29 de maio de 2005, 55% dos franceses votaram contra o tratado, 45% votaram a favor. Poucos dias depois, a 1 de junho, 62% dos holandeses rejeitaram igualmente o novo texto e 38% votaram a favor do mesmo.

Assim, o referendo do Brexit, em 2016, em que 52% dos britânicos votaram a favor da saída da UE e 48% contra, não foi o primeiro a abrir uma crise na UE. Esta mergulhou depois na chamada crise constitucional, num período de reflexão, para decidir o que fazer. Aproveitando partes da malograda Constituição europeia, considerada por muitos como um documento à frente do seu tempo, demasiado federalista, chegou-se então ao Tratado de Lisboa. Tem o nome da capital portuguesa porque aí foi acordado e assinado. Corria o ano de 2007.

Não sem antes passar por vários sobressaltos. Vindos, mais uma vez, do resultado de referendos. Desta vez na Irlanda. A 12 de junho de 2008, 53% dos irlandeses votaram contra o Tratado de Lisboa e 47% votaram a favor do mesmo. Após muita pressão, tensão e novas negociações, o referendo foi repetido a 2 de outubro de 2009 e, desta vez, o tratado foi aprovado com 67% dos votos a favor e 33% contra. Pelo meio, uma cedência: a de que cada Estado membro continuasse a ter direito a um comissário na Comissão Europeia, em vez da redução e rotatividade, que antes estava em cima da mesa. Nessa altura, nem Irlanda, nem Portugal, nem Grécia, nem os outros países europeus pareciam antecipar ainda a crise das dívidas soberanas na Zona Euro, que obrigou à intervenção da troika e ao pedido de resgates financeiros internacionais com a participação do FMI.

O Tratado de Lisboa pôde, então, seguir o seu caminho, esbarrando ainda em exigências de última hora de governos como o da Polónia, na altura dominado pelo partido dos irmãos Kaczynski, como acontece, aliás, também hoje em dia (o então presidente polaco Lech Kaczynski morreu entretanto num acidente de avião a 10 de abril de 2010, em Smolensk, na Rússia). Na altura, nos bastidores, muitos diplomatas comentavam o facto de os polacos - mas também os checos - poderem estar a ser peões do Reino Unido para entravar o processo.

Com um pé dentro e outro fora da UE, desde que aderiu ao clube, em 1973, os britânicos sempre foram conseguindo ao longo dos tempos negociar vários opting-outs de várias políticas europeias numa atitude conhecida como cherry picking. Na cerimónia de assinatura do Tratado de Lisboa, no Mosteiro dos Jerónimos, a 13 de dezembro de 2007, o então primeiro-ministro do Reino Unido Gordon Brown (do Labour) foi o único representante nacional a não estar presente na cerimónia. Deixou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, David Miliband, a assinar o documento sozinho em nome dos britânicos. Brown chegaria atrasado, assinando mais tarde o tratado.

O Tratado de Lisboa, que na verdade é um conjunto de outros tratados, protocolos, atas e afins, entrou finalmente em vigor a 1 de dezembro de 2009. A saída de um país da UE passou, então, a constar no Artigo 50.º do Tratado da União Europeia. Também com cinco pontos. No segundo ponto do artigo idealizado e redigido pelo lorde John Kerr pode ler-se: "Qualquer Estado membro que decida retirar-se da União notifica a sua intenção ao Conselho Europeu. Em função das orientações do Conselho Europeu, a União negocia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. Esse acordo é negociado nos termos do n.º 3 do artigo 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu."

O acordo de saída do Reino Unido foi fechado entre Londres e a UE 27 no final de novembro de 2018. A sua aprovação pelo Parlamento Europeu não suscita, em princípio, quaisquer reticências. O problema reside no Parlamento britânico, onde o acordo volta a ser debatido a partir desta quarta-feira e deverá ser votado no dia 14 deste mês. Problema: a oposição ao governo de Theresa May, aliada aos rebeldes do Partido Conservador da primeira-ministra e aos descontentes do DUP (partido da Irlanda do Norte) ameaçam chumbar o acordo, tornando mais provável um cenário de saída do Reino Unido da UE, sem acordo, à meia-noite do dia 29 de março.

É esta a data prevista para a saída dos britânicos, porque será essa a data em que, tal como estabelecido no ponto 3 do Artigo 50.º, passam dois anos desde que o governo de May acionou esse mesmo artigo. Como o lorde Kerr não se tem cansado de sublinhar ultimamente, esse período de dois anos pode ser estendido, refere ainda o terceiro ponto, se "o Conselho Europeu, com o acordo do Estado membro [que quer sair]" decidir "por unanimidade prorrogar esse prazo".

Apesar de o Artigo 50.º só falar, no ponto 5, da possibilidade de o Estado membro poder voltar a pedir para entrar na UE depois de já ter saído dela, Kerr sempre argumentou que a ativação desse artigo não é, ela própria, irrevogável. "Eu penso que, se perguntarem a um advogado especializado em direito comunitário, ele dirá que não é irrevogável. Se o assunto tivesse de ser decidido por um tribunal, seria o Tribunal de Justiça da UE e a decisão seria a de que não é irrevogável", declarou o diplomata britânico, em 2017, ao Politico.eu.

Membro vitalício da Câmara dos Lordes desde junho de 2004, Kerr sublinhou nessa entrevista: "As regras do jogo são que na UE é sempre possível mudar de ideias. Já várias vezes um Estado membro mudou de ideias a meio do procedimento legislativo porque teve eleições nacionais e a esquerda derrotou a direita ou a direita derrotou a esquerda."

Num artigo publicado no Guardian, a 6 de dezembro de 2018, Kerr, casado e pai de cinco filhos, argumentou: "Não penso que seja correto ficar-se apenas por um voto do Parlamento [britânico] que possa travar o processo do Brexit. Penso que se foi o povo que iniciou tudo isto, deve ser o povo a ter a decisão final. Claro que, quase de certeza, isso implicaria uma extensão dos prazos do Artigo 50.º para além do dia 29 de março. O tratado é muito claro em relação a isso - pode ser feito e requer unanimidade entre todos os Estados da UE. Se o nosso propósito para pedir mais tempo for um referendo, não há dúvidas de que todos concordariam. O Brexit será mau para todos, embora, como é óbvio, muito pior para nós." A opção de um segundo referendo tem sido, até agora, sempre rejeitada pela primeira-ministra Theresa May. E o líder da oposição trabalhista, Jeremy Corbyn, também não é entusiasta da ideia.

Quatro dias depois de o lorde Kerr assinar este artigo de opinião, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu, tal como ele previra, que o Reino Unido está sempre a tempo - e tem legitimidade para fazê-lo - de revogar a ativação do Artigo 50.º do Tratado de Lisboa - deixando sem efeito o pedido de saída dos britânicos da UE. Nesse mesmo dia, à noite, Theresa May anunciou o adiamento do voto do acordo do Brexit na Câmara dos Comuns, previsto para o dia seguinte, 11 de dezembro. Tudo por suspeitar que não ia ser aprovado.

O que aconteceu a seguir, é conhecido: a chefe do governo conservador sobreviveu a uma moção de desconfiança interna, apresentada pelos eurocéticos do seu próprio partido, foi ao Conselho Europeu pedir mais concessões sobre a questão do backstop, mecanismo de salvaguarda destinado a evitar o regresso de uma fronteira física entre as duas Irlandas após o Brexit, mas voltou de mãos a abanar, viu Corbyn apresentar uma moção de censura, mas só contra si e não todo o governo, algo que não teve pernas para andar, passou-se o Natal, o Ano Novo e, agora, o debate sobre o Brexit regressa em força.

De consequências imprevisíveis - vários cenários continuam em aberto -, o processo do Brexit levou já a Comissão Europeia a apresentar um plano de contingência para um cenário de Brexit sem acordo. Londres fez o mesmo. Esta segunda-feira, dia 7, os britânicos vão realizar um ensaio, com 150 camiões a bloquear uma estrada que liga o porto de Dover a um aeroporto local. Os restantes 27 também já começaram a anunciar os seus planos de contingência para um cenário de saída desordenada e desregulada do Reino Unido da UE. Em Portugal, esse plano é discutido pelo Parlamento no dia 17.

Segundo garantiu na semana passada o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, o governo de Portugal apresentará sempre o seu plano de contingência: quer a Câmara dos Comuns vote o acordo do Brexit no dia 14, quer não vote, quer o aprove, quer o chumbe, quer faça outra coisa qualquer... A novela Brexit segue, por isso, dentro de momentos.

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