"Livre circulação no acordo pós-brexit com a UE não é aceitável"
Almoço com Kirsty Hayes, embaixadora do Reino Unido em Portugal
Quando nos encontramos nos antigos claustros do Convento da Igreja dos Mártires, no Chiado, ainda vou a pensar como foi fácil marcar o encontro. Convite aceite à primeira, pormenores decididos num segundo telefonema e ali estávamos quatro dias depois, sentadas a uma mesa do Largo, sob as abóbadas de pedra espartanas que hoje abrigam quem ali vai para comer bem. Ou para juntar uma bela refeição à contemplação das medusas que dançam nos aquários - como acontece cada vez que Kirsty ali leva os filhos (uma rapariga de 12 anos e um rapaz de 10). "Eles adoram", diz a embaixadora do Reino Unido, que aqui se instalou em setembro de 2014 e nem quer pensar na hora de se ir embora, ainda que não tenha grandes ilusões de ficar: "Talvez fique uns meses além do mandato, até 2019, mas Lisboa é sempre dos postos mais desejados, quer pela importância das relações com Portugal quer pela qualidade de vida que aqui existe."
Não há formalidades na postura ou no discurso. Ri-se com facilidade e cria empatia quase instantaneamente, como uma colega de escola que não via há tempos. É fácil gostar de Kirsty. Ainda não tem 40 anos mas não lhe causa estranheza que já seja embaixadora: "No nosso sistema, não é tão incomum, sobretudo desde que há exames para verificar se a pessoa está preparada para progredir. É um sistema mais objetivo e tem trazido mais senhoras, mais minorias étnicas e pessoas com deficiência para a diplomacia. E temos embaixadores muito jovens."
Fala em português - ainda que confesse que não lhe é fácil aprender línguas - e apesar da pronúncia obviamente britânica raras vezes tem de pensar na palavra que melhor descreve o que quer dizer. Explica-me que o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico promove a aprendizagem - "temos de saber o suficiente para pelo menos conseguirmos dar uma entrevista na língua do país onde estamos colocados"; ela própria tirou um curso de sete meses antes de vir para Lisboa.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Escolhidas as entradas e os pratos entre as opções que o Largo tem ao almoço, conta-me que, quando deixar Lisboa, talvez gostasse de ser escolhida para um cargo que a levasse de volta ao Reino Unido, para poder estar mais tempo com o marido, Peter. Sendo ambos diplomatas - já estiveram nos Estados Unidos, onde nasceu a filha, no Sri Lanka... -, hoje quase só conseguem estar em família quando a agenda de Peter lhe permite um intervalo entre o gabinete em Londres e as viagens a que obriga o seu cargo de diretor dos territórios ultramarinos do Reino Unido. "É muito difícil... a maior parte do tempo faço vida de mãe solteira: tenho de ser eu a tratar das crianças, arranjar-lhes os almoços logo de manhã, prepará-las para o colégio... Não é uma visão muito glamorosa."
Claro que a sua vida está longe de ser monótona. Ainda na semana passada andou a correr entre eventos da Web Summit, por onde passaram quase oito mil britânicos, organizou um encontro que juntou investidores britânicos e startups portuguesas que estão a pensar estabelecer uma base no Reino Unido, esteve nas celebrações do Armistício da Grande Guerra, recebeu uma delegação de empresários e promoveu um encontro entre deputados britânicos e portugueses do grupo de amizade com o Reino Unido no Parlamento. E no último fim de semana esteve no Porto, onde tenta ir de seis em seis semanas, para a inauguração da nova sede da Blip (grupo britânico de software e engenharia web), com o ministro da Economia; dali seguiu para uma receção de apresentação da nova cônsul honorária no Porto. "Cada dia é diferente e todas as noites tenho de estudar para o que vou fazer no dia seguinte", ri-se.
Ainda assim, consegue arranjar tempo para montar os seus cavalos e treinar para os concursos em que participa regularmente. "Mas neste momento, talvez 90% das minhas intervenções são para explicar o brexit. Os meus primeiros dois anos aqui foram antes do referendo e os próximos são pós-referendo, mas quando me for embora ainda vamos estar na União Europeia."
Aproveito a chegada da sopa de tomate e do meu tártaro de atum para saber se acredita que será mesmo só em 2019 que a saída será concretizada. "Teoricamente, é possível concluir mais cedo mas não acho muito natural, porque é uma negociação complexa... a parte comercial vai demorar."
Pergunto-lhe se esperava o brexit. Corrige-me, "o resultado do referendo", mas não evita a resposta. "Não, não esperava. Durante a campanha nunca houve certezas, foi uma experiência muito nova para a nossa democracia, e eu pensava que o bremain iria ganhar. No dia 23 estava no Porto, nas celebrações do São João, com o Presidente, o primeiro-ministro, o presidente da câmara, quando recebemos as palavras iniciais de Nigel Farage a assumir a derrota, mas quando voltei para o hotel vi no iPad os primeiros resultados e eram bem diferentes. Foi uma surpresa."
Saboreia o vinho branco que escolheu para acompanhar o peixe que há de vir - "gosto muito dos vinhos portugueses" - e explica que a situação no Reino Unido está muito mais calma do que nas semanas pós-referendo, sobretudo porque a economia "correu bem durante o verão" - a libra mais fraca atraiu turistas e potenciou vendas. "Falei com muitos portugueses que têm lá investimentos ou estão a pensar ter e a maioria está calma", garante. "Queriam saber mais sobre os termos do acordo, mas não foi um pânico."
E agora, fechada a decisão - a embaixadora não acredita que haja novos referendos, mesmo na Escócia, onde nasceu -, "a prioridade é unir o país. É nisso que a primeira-ministra Theresa May está focada". A importância de manter o olhar nos assuntos domésticos é fácil de entender: o resultado do referendo mostrou um reino muito pouco unido. E agora é preciso "negociar e dialogar sobre o futuro do país e a sua relação com a União Europeia, dando à Escócia, à Irlanda do Norte e ao País de Gales oportunidade para fazer ouvir a sua voz à medida que estabelecemos a nossa estratégia para as negociações. E esperamos que a solução encontrada lhes dê segurança. Mas o Reino Unido vai continuar unido".
Kirsty está otimista, é otimista por natureza - "é a qualidade mais importante para um diplomata". A velha máxima encaixa como uma luva: esperar o melhor, estar preparado para o pior. E neste caso o assunto mais complicado é a imigração. Se, admite a embaixadora, no nível global os imigrantes beneficiaram muito a economia britânica, "para algumas famílias da classe trabalhadora a imigração criou problemas. O nível de emprego é o mais alto da nossa história, o que é fantástico, mas para os trabalhadores menos qualificados os salários sofreram com a concorrência dos imigrantes, ficaram em níveis muito baixos". E a ideia de que um imigrante que chega ao Reino Unido pode beneficiar de apoios e subsídios sem nunca ter contribuído com um penny para o sistema de segurança social "é difícil de entender para muita gente".
Por outro lado, há a preocupação de controlo das fronteiras, um dos principais fatores na campanha do brexit, ainda que "o Reino Unido tenha grande solidariedade para com os refugiados". Nem por um momento a embaixadora despreza o papel e a influência das diferentes culturas no seu país, e faz questão de sublinhar que os portugueses "têm sido sempre muito bem recebidos e nos têm beneficiado - são qualificados, estão no setor criativo, financeiro, na City, na saúde. Mas a livre circulação é um problema: "Entre os que vêm de fora da União Europeia, podemos escolher quem entra." A justificação mistura fatores de diferentes ordens: por um lado, questões de segurança (e terrorismo); por outro a economia (empregos, salários). "Pensámos que todos beneficiariam com as mudanças introduzidas pela União, mas isso não aconteceu - e os movimentos extremistas que temos visto surgir por toda a Europa refletem essa questão. A responsabilidade dos políticos é assegurar que os que foram maltratados pela globalização e pelo crescimento deixem de se sentir deixados para trás."
É por isso que acredita que a imigração vai pesar muito no acordo que será traçado. "A nossa primeira-ministra deixou claro que se a oferta da União implicasse a livre circulação como é hoje isso não será aceitável para o nosso povo, não vai acontecer. Não é uma questão de cherry picking, mas há uma enorme diferença entre a livre circulação total e nada. O que esperamos é que as partes encontrem uma solução original que ofereça as melhores condições para todos. Já há casos de acordos com países de fora que têm acesso a vários setores, por isso vamos ver."
O assunto trouxe-lhe traços muito mais velhos à "cara redonda" que a faz parecer ainda mais jovem. Quero saber como viu a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos. Diz que é preciso esperar para ver as diferenças entre o candidato Trump e o presidente Trump. "Temos uma história muito profunda com os EUA e vamos continuar a querer ter uma relação muito forte. Os nossos ministros estão a falar..." Desvaloriza o convite de Trump a Farage para uma visita: "Ele apoiou a campanha, foi um convite a título pessoal. Vamos ver como correm as coisas."
A chegada dos lombos de peixe--galo recupera-lhe o sorriso e a certeza de que tudo vai acabar bem. Mesmo porque há um trabalho a ser feito nesse sentido. Nessa mesma tarde, a embaixadora embarcaria para Londres, onde fora chamada para receber Marcelo Rebelo de Sousa. "É um momento muito importante para nós: ele é um dos primeiros chefes de Estado a visitar--nos depois do referendo, e sendo Portugal o nosso aliado mais antigo queremos recebê-lo bem, mostrar que estamos a sair da UE mas não da Europa, que damos prioridade aos nossos parceiros. Queremos mostrar que esta aliança tem futuro, é antiga, mas também é moderna." A Marcelo Kirsty não poupa elogios. "Gosto imenso dele, parece que tem uma habilidade natural para criar ligações a qualquer nível. Estamos muito entusiasmados com esta visita." E Marcelo não desiludiu, como me contou a embaixadora ao telefone, já ontem. "Foi uma experiência fantástica; o encontro com Theresa May foi muito positivo - até revisitaram em Downing Street, com a ajuda de um especialista, o Tratado de Windsor e todos os documentos da aliança entre Portugal e Reino Unido e a reunião com a rainha foi o highlight." No final dos mais de 30 minutos que durou o encontro a dois com Isabel II, e em que foram focados os assuntos europeus, a relevância da visita de Marcelo materializava-se no futuro das relações entre os países. "É uma aliança para durar e esta visita é símbolo disso mesmo. Vai continuar, independentemente do acordo com a UE."
A receção do Presidente em Buckingham é a oportunidade perfeita para falar de Isabel II e da família real britânica. "A nossa rainha tem enorme popularidade. Os príncipes bebés [George e Charlotte, filhos de William e Kate] são adoráveis, mas a rainha continua a ser o membro mais popular da família. E tem um papel muito ativo: é a monarca com o reinado mais longo e a chefe de Estado há mais tempo no poder." Kirsty esteve com Isabel II em diversas ocasiões e garante que é uma mulher "fascinante, de uma enorme inteligência e com imenso sentido de responsabilidade". "Temos muito orgulho e respeito pela nossa rainha."
Já se vai fazendo tarde e os pratos dão lugar aos cafés, que trazem a conversa de volta ao seu percurso. Nascida numa família de médicos, escolheu Arqueologia para se formar - seguida de dois mestrados, em Relações Internacionais e Diplomacia - pela oportunidade de trabalhar em equipa e participar em escavações. E fez várias, na América do Sul, mas por influência de uma tia convenceu-se a seguir a vida de diplomata. E garante que o que aprendeu lhe foi muito útil: "Não se pode entender um país sem saber a história e conhecer a cultura." É por isso que faz por andar pelo país e conhecer as suas diferentes realidades - ainda há dias passou uma semana com a família e os cães num barco, no Alqueva. "Foi um espetáculo." No verão, no rescaldo dos "terríveis incêndios", esteve na Madeira para agradecer ao governo regional a forma como geriu a crise. "Sempre que há um problema assim, há reclamações porque é muito difícil responder adequadamente a todas as necessidades, mas ali só recebemos elogios, dos turistas e da comunidade britânica residente."
Em breve a família volta a juntar-se: "O meu marido vai tirar uma sabática para estar comigo e com as crianças." No Natal, vão à Escócia, onde ela nasceu (Aberdeen) e os pais ainda têm casa. "Vamos passar a noite no comboio. As crianças estão superentusiasmadas!" Kirsty também. Pergunto-lhe se tem pena de não ter seguido a carreira de arqueóloga. E pela primeira vez assume: "Ainda sou nova. Tenho tempo..."
Largo
› Entradas
› Água com gás
› Copo de vinho branco
› Imperial
› Sopa de tomate
› Tártaro de atum
› Lombos de peixe-galo com leite de coco e legumes assados
› Dois cafés
Total: 51,5 euros