Kirchner quebra o silêncio e eclipsa dia histórico de Macri
A Argentina vai poder emitir títulos de dívida pública e voltar aos mercados internacionais pela primeira vez em mais de uma década. Mas aquele que devia ter sido um dia histórico para o governo de Maurício Macri, acabou por ficar marcado pelo regresso da antecessora, Cristina Kirchner. A ex-presidente foi ouvida em tribunal por alegada fraude ao Estado, numa operação de compra e venda de dólares que terá custado milhões aos cofres públicos, mas transformou o regresso a Buenos Aires - após quatro meses de autoexílio em El Calafate - num comício para criticar o sucessor e demonstrar a força do kirchnerismo.
"Quero que estejam todos tranquilos. Podem chamar-me mais 20 vezes para ser ouvida, podem prender-me, mas não conseguirão calar-me, impedir-me de dizer o que penso, estar como sempre junto de vocês", disse a ex-presidente às milhares de pessoas que ignoraram a chuva torrencial e se juntaram para a ouvir frente aos tribunais de Comodoro Py. Kirchner apresentou-se como uma vítima de perseguição política, comparando-se ao pai do peronismo, Juan Domingo Perón, que foi detido em 1945 pelos militares por causa da sua popularidade e libertado sob pressão popular.
"Estou segura que, se pudessem proibir a letra K do abecedário, o fariam", acrescentou a ex-presidente, que entregou um testemunho escrito ao juiz Claudio Bonadio dizendo que não tem medo e que enfrentará este processo ou qualquer outro que queiram "fabricar". Além deste caso, Kirchner está também sob investigação por alegada lavagem de dinheiro, num processo que envolve um empresário de construção civil, próximo da ex-presidente, que terá enriquecido com a concessão de obras públicas.
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Kirchner também não perdeu a oportunidade de atacar o sucessor. "Nunca vi tantas calamidades produzidas em 120 dias", disse a ex-presidente, questionando as políticas económicas de Macri, as subidas de preços nos setores dos transportes, água ou eletricidade e os despedimentos de funcionários públicos.
Macri reagiu um dia depois, qualificando de "infeliz" o ato de Kirchner. O governo está concentrado em cumprir uma das promessas da campanha: resolver a situação dos chamados fundos buitre (abutre), fundos de investimento de risco que, após o default de 2001, não aceitaram renegociar as dívidas em 2005 e 2010 e recorreram à justiça.
Em 2014, um tribunal de Nova Iorque tinha proibido os pagamentos aos credores que tinham renegociado a dívida, lançando a Argentina num segundo default. Na quarta-feira, o juiz norte-americano levantou essa proibição, abrindo caminho para o pagamento das dívidas. Kirchner nunca quis negociar com os fundos buitre, isolando o país dos mercados internacionais, ao contrário de Macri que já chegou a acordo com 90% deles - os dois principais, o NML Capital e o Aurelius deverão receber 4653 milhões de dólares para desistir do processo judicial.
Para pagar a dívida, Buenos Aires prepara-se para voltar aos mercados internacionais, tendo previsto emitir na segunda-feira títulos de dívida pública para angariar entre 12 e 15 mil milhões de dólares. Ontem, o ministro das Finanças argentino, Alfonso Prat-Gay, disse que a procura pelos títulos está a ser "espetacular". E o presidente mostrou-se otimista, dizendo que a Argentina já começou "um caminho de crescimento". Macri lembrou que a decisão do tribunal norte-americano "abre as portas à multiplicação dos investimentos" no país e que, ao sair do default, "a Argentina vai poder exportar mais porque já está dentro do mundo".