Wyllys teve de fugir, mas bancada gay passa de um para três no Congresso

Jean Wyllys, único deputado LGBT assumido, fugiu do país por causa de ameaças. Mas será substituído por outro homossexual. E ainda há mais um senador e um deputado em Brasília a partir de sexta-feira, data do início do novo ano parlamentar
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Quem percorre o principal corredor do Senado Federal, a câmara alta do Congresso Nacional do Brasil, encontra os gabinetes dos deputados alinhados numericamente: o número um, depois o número dois, depois o número três e assim sucessivamente até ao número 22, número 23 e ... número 25. Falta o 24. Porquê? A homofobia e uma boa dose de infantilidade explicam: no popular (e ilegal) jogo do bicho, o 24 é o número do "veado" que, na sua grafia homófona "viado", diminutivo de "transviado", serve de baixo calão no país para gay. E, pelos vistos, nenhum senador quer ficar com um gabinete que aluda a homossexualidade.

Nem a presença de Jean Wyllys, eleito pelo siteCongresso em Foco por três vezes em quatro anos o melhor deputado do país e considerado em 2015 pela The Economist como uma das 50 personalidades que mais lutam pela diversidade no mundo, suavizou o preconceito.

Wyllys decidiu nos últimos dias sair do país, por causa das ameaças de morte que vem recebendo desde a execução da colega de partido Marielle Franco e que o obrigavam a usar carro blindado - "vou te matar com explosivos", "vou quebrar teu pescoço", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça", foram algumas, de entre milhares, das divulgadas.

Mas será que sem Wyllys as causas LGBT ficam sub-representadas no poder legislativo do Brasil? Não, na legislatura que começa dia 1 de fevereiro a bancada gay do Congresso até triplica - leia-se, passa de um para três. Dada a onda conservadora saída das urnas em outubro de 2018, é um feito.

Desde logo, Wyllys, jornalista e académico que se tornou famoso ao concorrer e vencer uma edição do programa Big Brother Brasil, será substituído por "negro, favelado e gay", como se define David Miranda.

DAVID MIRANDA

E Miranda começou logo ao ataque nas redes sociais: "Respeite o Jean, Jair, e segure sua empolgação. Sai um LGBT, entra outro que vem do Jacarezinho [favela do Rio de Janeiro] e aprovou mais projetos em dois anos do que você em 28, nos vemos em Brasília".

O comentário era uma resposta ao tweet de Jair Bolsonaro - "grande dia" - divulgado instantes após o anúncio do exílio de Wyllys (o presidente brasileiro, mais tarde, dada a repercussão negativa, afirmou que se estava a referir ao dia em Davos, onde se encontrava).

Miranda tem 33 anos, foi o primeiro vereador gay do Rio de Janeiro e trabalhou como engraxador de sapatos, faxineiro, distribuidor de panfletos, estafeta e caixa de restaurante enquanto se formava em Comunicação. Desde há 13 anos é casado com Glenn Greenwald, o jornalista americano que publicou reportagens no caso "Edward Snowden", com quem tem dois filhos adotados há dois anos.

Não será o único gay assumido a tomar posse na próxima sexta-feira, dia em que recomeçam os trabalhos no Congresso.

MARCELO CALERO

Ao contrário de Miranda, militante de um partido de extrema-esquerda, Marcelo Calero foi eleito deputado nas eleições de 2018 pelo social-democrata PPS, força que foi oposição aos governos do PT a partir de 2004 e até ao fim do consulado de Dilma Rousseff. Calero, aliás, ganhou notoriedade como ministro da cultura do governo liderado por Michel Temer ao longo de seis meses.

Sairia do cargo após protagonizar o primeiro grande escândalo da Era Temer, ao denunciar o hoje detido Geddel Vieira Lima, então ministro-chefe e braço direito do presidente, de tráfico de influência. Geddel queria que fosse aprovada a construção de um prédio no centro de Salvador, onde ele havia adquirido apartamento, mesmo após um instituto ligado à área do património histórico, sob a alçada de Calero, ter negado a obra.

Perante a insistência de Geddel e a passividade de Temer no caso, Calero demitiu-se. Dias depois, Geddel foi obrigado a sair também, perdendo a imunidade, conhecida como foro privilegiado, que o levaria, mais tarde, à prisão pela descoberta, não explicada, de 51 milhões de reais [cerca de 12 milhões de euros] num dos seus apartamentos.

FABIANO CONTARATO

Geddel estava para Temer assim como Magno Malta, senador do PR, partido de direita, estava para Bolsonaro: inseparáveis na vida política. Pastor evangélico e cantor gospel, Malta chegou a ser convidado pelo atual presidente para o cargo de candidato a vice - mas preferiu não arriscar uma eventual derrota do amigo e decidiu concorrer à, mais segura, reeleição no Senado, pelo estado do Espírito Santo.

No entanto, num dos mais surpreendentes desfechos das eleições de outubro, o pastor, conhecido pelo combate à agenda LGBT, perdeu a eleição para Fabiano Contarato, gay assumido, casado com um homem e pai de Gabriel, quatro anos, recentemente adotado.

Malta foi, entretanto, dado como certo como ministro da família do governo de Bolsonaro mas acabou preterido.

Na campanha, embora defendendo bandeiras como a inclusão e os direitos LGBT, Contarato declarou-se cristão praticante, à imagem de Marina Silva, a líder do seu partido, o Rede. Uma vez eleito, lamentou as fake news propagadas contra si e usou expressão bíblica para classificar o seu sucesso - "Davi venceu Golias".

Licenciado em direito, Contarato, o primeiro senador do Brasil assumidamente gay, trabalha como delegado de polícia e professor. No Senado, terá um gabinete à sua espera - que pode muito bem ser o número 24.

Em São Paulo

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