Um ano depois, Moro pode ajudar Lula a ir para casa

Após 365 dias numa cela de 15 m² a receber más notícias consecutivas, defesa do antigo presidente tenta contra-ataque jurídico com base em tese do seu algoz. Mas, uma vez cá fora, o que vale o líder da esquerda politicamente?
Publicado a
Atualizado a

No dia 7 de abril de 2018, o então juiz Sergio Moro mandou Lula da Silva cumprir pena de 12 anos e um mês de prisão, em Curitiba, por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do apartamento tríplex, no Guarujá, litoral de São Paulo. Um ano depois, os advogados do antigo presidente brasileiro buscam uma transferência para regime domiciliar através de um contra-ataque jurídico, composto por 18 teses, uma delas defendida pelo hoje ministro da justiça quando ainda era apenas um anónimo magistrado.

Nos próximos dias - resta saber o momento exato - o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), terceira instância judicial brasileira, vai analisar recurso da defesa de Lula contra a condenação. No meio daquela dúzia e meia de teses, os advogados apostam, por um lado, na simples anulação do processo por corrupção, o que se prevê difícil dada o histórico do STJ de manter as decisões das instâncias inferiores, mas também, por outro, na supressão do crime de lavagem de dinheiro, por esse suposto ilícito decorrer apenas do crime de corrupção, dado não ter havido tentativa de ocultação do imóvel.

Este entendimento encontra eco no julgamento no Supremo Tribunal Federal do caso do Mensalão, em 2012, quando a juíza Rosa Weber defendeu essa tese, a de que um crime de lavagem de dinheiro devia ser suprimido por não ter havido tentativa de ocultação, a propósito de um dos acusados. A tese foi redigida pelos juízes auxiliares de Weber, dos quais se destacava Moro, como lembrou reportagem da revista Época.

E caso o STJ entenda suprimir, de facto, o crime de lavagem de dinheiro, a pena de Lula poderá ser substancialmente diminuída. Uma vez diminuída, ao abrigo da progressão do regime prisional, o preso em questão - Lula - pode passar a prisão domiciliária muito em breve.

O jurista João Paulo Martinelli, professor de pós-graduação em direito penal ouvido pelo jornal Correio Brasiliense, explica que a revisão de pena não é rara. "Existem várias decisões que reveem as penas. Não se analisa o facto, mas sim a dosimetria da pena, se o cálculo foi feito de forma correta ou não. No caso de Lula, por exemplo, é possível analisar se o crime de lavagem não seria um delito autónomo ou não".

Com a possibilidade de progressão para prisão domiciliária no horizonte - e mesmo tendo em conta que o antigo presidente responde a mais seis processos e já foi condenado noutro, o do sítio de Atibaia, em primeira instância - a questão seguinte é qual o seu peso político fora da cadeia?

Dentro dela, é forte, segundo dados concretos: de abril, mês da detenção, até agosto, mês em que foi dado definitivamente como inelegível e substituído por Fernando Haddad, liderou com folga todas as sondagens e pesquisas de opinião como candidato às eleições presidenciais de outubro de 2018.

Mesmo preso, aliás, consegue manter-se ativo no noticiário. O PT mantém, desde o dia da prisão, o "Comité Popular em Defesa de Lula e da Democracia", com boletins noticiosos em português e em inglês distribuídos à imprensa todos os dias, e o "Movimento Lula Livre", composto por acampamentos, vigílias, marchas e até greves de fome junto à prisão de Curitiba.

Entretanto, nos primeiros 100 dias de governo, o presidente Jair Bolsonaro e os seus ministros e apoiantes também atacam Lula com frequência, como se de um líder da oposição se tratasse - a última vez, em tom de piada, quando o atual chefe de estado plantou uma oliveira em Israel ao lado de uma plantada pelo antigo presidente e vaticinou que a sua cresceria mais alto.

O cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, sublinha isso mesmo. "Mesmo com a prisão, o PT conseguiu ir à segunda volta das eleições, mas uma coisa é a força política e outra é a situação jurídica dele".

"Preso ou livre, fora de um cenário eleitoral, penso que ele hoje tem menos peso do que tinha há um ano, quando era favorito a vencer as eleições, que até sinto que acabaria por não vencer, mesmo sendo um candidato forte", defende entretanto o jornalista Matheus Pichonelli, colunista dos portais UOL e Yahoo.

"De qualquer forma, ele já emite sinais para o mundo, da cadeia articulou toda a estratégia que definiu a eleição, ao esvaziar a candidatura de Ciro Gomes e apostar todas as fichas em Haddad, num momento em que o anti-petismo não havia ainda sido mensurado", prossegue.

Fora da reclusão, o impacto de Lula poderá ser maior? Noronha acredita que não. "Não seria oposição mais forte do que já é hoje e, ainda que ele seja beneficiado com a prisão domiciliária, é preciso aguardar as medidas restritivas".

Para Pichonelli, "fora da cadeia, por um lado, depois de ele ter sido condenado de forma acelerada, para os padrões brasileiros, por um juiz que assumiu cargo no governo adversário, resta saber o que vai sobrar da esquerda sem o slogan "Lula Livre"". "Por outro lado, o prestígio de Bolsonaro não seria muito abalado com ele fora porque o governo já perde apoio por erros próprios e cotoveladas até dos principais apoiantes".

Preso há 365 dias, Lula tem passado por horas difíceis na sala de 15 m², com armário, mesa, quatro cadeiras, passadeira de corrida, aparelho de televisão com acesso aos canais abertos e casa de banho. Além da derrota de Haddad, no campo pessoal custou-lhe saber da morte do amigo Sigmaringa Seixas, deputado pelo PT, e do falecimento do irmão mais velho, Genival, conhecido como Vavá. Mas foi, como conta reportagem do jornal Folha de S. Paulo, a morte do neto de sete anos Arthur, em consequência de uma infeção generalizada e não de meningite, como chegou a ser divulgado pelo hospital, que o derrubou.

Todos os dias reúne-se com os advogados, uma hora de manhã e outra à tarde, alguns deles filiados ao PT, pelo quais se informa de tudo o que vai acontecendo no seu partido e no governo de Bolsonaro. Às quintas, recebe familiares e amigos e três vezes por semana pode circular num espaço de 40 m² para banhos de sol. A juíza Carolina Lebbos, que tutela a prisão, proibiu os encontros religiosos que o antigo presidente manteve nos primeiros meses após a detenção com padres, pastores evangélicos, umbandistas e membros de outras fés.

Acorda invariavelmente às 07.00, ao som do "bom dia presidente Lula", gritado da vigília perto da prisão, veste-se com camisas do PT ou do clube do coração, o Corinthians, e toma a medicação própria de um pré-diabético, sem, porém, ter restrições alimentares, além do controlo dos doces. Antes da detenção, Lula, que passou por um tratamento contra um cancro na laringe, já havia deixado de fumar e começado a realizar exercícios diários, hábito que mantém, com a ajuda dos agentes, na correção dos movimentos.

Os amigos, conta ainda a Folha, negam sintomas de depressão. "Depressão não, apenas raiva", afirmam. Por isso o seu livro de cabeceira é "A Virtude da Raiva", escrito por Arun Ghandi, neto do líder pacifista indiano. Raiva, sobretudo, do juiz que o condenou, hoje ministro de Bolsonaro, mas cuja tese pode ajudar a levar para casa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt