Sánchez: "O que lhes peço é que Espanha tenha governo"

Quase três meses após a vitória eleitoral sem maioria, líder socialista chega ao debate de investidura sem ter garantida a vitória. No discurso não falou de Catalunha e terminou com um apelo ao Podemos, mas também aos conservadores.
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O líder socialista espanhol, Pedro Sánchez, apresentou propostas para um governo "progressista, europeísta, ecologista e feminista" no discurso de investidura. Contudo, quase três meses após a vitória eleitoral sem maioria, chegou ao Congresso espanhol sem ter finalizado um pacto com a aliança Unidas Podemos, cujos votos precisa para deixar de ser primeiro-ministro interino e dar início a uma nova legislatura.

No final do discurso de quase duas horas, onde não referiu o problema da Catalunha, Sánchez terminou com um apelo à Unidas Podemos de Pablo Iglesias. "Viemos de duas tradições distintas da esquerda. Nada que merece a pena é fácil. E o que temos por diante merece muito a pena", disse o líder socialista.

"Cabe-nos trabalhar para culminar um acordo e avançar com tudo o que nos une, que é a promessa da esquerda", acrescentou. "Os espanhóis pediram-nos que avançássemos e estamos em condições de o fazer", indicou Sánchez. Depois de Iglesias ter dado um passo ao lado e renunciar a liderar um ministério, há ainda divergências em relação a que pastas a Unidas Podemos pode assumir.

Mas, no final, Sánchez deixou também uma mensagem para os partidos conservadores. "Sei que vocês preferiam ir noutra direção. Não lhes peço que apoiem este projeto, o que peço é que retirem as barreiras, que permitam que Espanha tenha Governo. O que lhes peço, o que lhe exijo, é que Espanha tenha Governo. O que lhes peço é que permitam que Espanha avance".

Acabar com o bloqueio

"Em 1979, há 40 anos, celebrou-se o primeiro debate de investidura", lembrou Sánchez no início do discurso, dizendo que não havia os buracos de bala no teto no hemiciclo (restos da tentativa de golpe do 23 de fevereiro de 1981) e o espaço estava cheio do fumo do tabaco dos deputados, na sua maioria homens. "Passou muito tempo, mas o ritual de investidura continua a ser o mesmo", explicou, dizendo que vai "solicitar a confiança, apelar à responsabilidade e à generosidade" dos deputados, para acabar com o bloqueio em Espanha.

Sánchez defendeu que em Espanha é hoje "uma democracia plena que contribui para o fortalecimento do nosso projeto comum, que é a Europa". E que, nas urnas, os espanhóis o que fizeram foi "avançar e não retroceder". E conseguiu o primeiro aplauso da câmara quando disse que o mandato que os eleitores deram foi o de "avançar e repudiar com todas as nossas forças toda a tentativa de banalização da violência que sofre a metade da população pelo facto de ser mulher".

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"Os espanhóis votaram por um governo progressista e por uma oposição responsável", disse Sánchez, indicando que é tempo de desbloquear a formação de governo e dizendo que só assim haverá também uma oposição. Lembrando que não tem a maioria, critica o "cordão sanitário" em redor do PSOE, isto é, quem disse desde logo "não" ao seu governo sem ouvir as propostas.

Sánchez ofereceu um primeiro "pacto de Estado", referente a uma reforma eleitoral. "Os cidadãos não devem nunca mais sofrer uma ameaça de repetição eleitoral. Com uma votação basta", indicou. Os espanhóis já tiveram que repetir eleições em junho 2016, depois de as de dezembro de 2015 não terem permitido formar governo, e arriscam ir pelo mesmo caminho se o socialista não chegar a acordo com a esquerda e não tiver, pelo menos, a abstenção de outros partidos regionais.

O líder socialista falou do tipo de executivo que quer formar: "Um governo progressista, europeísta, feminista e ecologista". E propõe "um governo que crie pontes e olhe para a frente".

Antes de discursar diante dos deputados, Sánchez já tinha pedido isso nas redes sociais "responsabilidade" para que Espanha "continue a avançar": "em justiça social, em convivência, em limpeza democrática". E prometeu apresentar propostas para um governo "progressista, europeísta, ecologista e feminista."

Seis desafios para o presente e futuro

Sánchez defendeu que há "seis desafios onde Espanha joga o seu presente e futuro mais imediato". Um deles responde à principal preocupação dos cidadãos: "o emprego digno e a sustentabilidade das pensões".

"O segundo desafio tem a ver com a revolução tecnológica", defendeu Sánchez, alertando para o facto de 21,7% dos empregos em Espanha estarem em risco de automatização e de desaparecerem. Quer que o país lidere a revolução digital na Europa.

O terceiro desafio enumerado por Sánchez são as alterações climáticas, lembrando que este é um desafio global mas que Espanha está "especialmente exposta". O líder socialista quer que Espanha lidere a luta contra as alterações climáticas, "convertendo este grande desafio numa grande oportunidade de prosperidade e progresso seguro para o conjunto da sociedade espanhola".

O quarto desafio é a igualdade "real e efetiva" entre homens e mulheres, com Sánchez a falar nos números trágicos da violência de género -- que, em 2018, representou quase um quinto dos homicídios registados em Espanha e que, numa década, houve mais de mil mulheres assassinadas.

"Este flagelo tem um nome, violência machista, não tem apelido ou eufemismo, é cometido em casa ou numa manada. Quem quiser inventar conspirações, que tenha algo claro: vão ter-nos pela frente", disse, sendo novamente aplaudido.

O quinto desafio de que Sánchez fala é a desigualdade social: "Vivemos numa sociedade que não dá as mesmas oportunidades a todos e não é certo que a desigualdade seja consequência da falta de mérito", afirmou, falando, por exemplo, da "insuportável taxa de pobreza infantil" que afeta 26% dos menores. E reiterou que quer Espanha "na primeira linha da luta contra a desigualdade social".

O sexto e último desafio é a posição global, defendendo a proteção da Europa, dos seus ideais, valores, de um modelo social único no mundo. "Todos os países europeus juntos somos um gigante", defendeu, falando da Europa como o "espaço no qual se superam os nacionalismos que levaram a duas guerras mundiais". E acrescentou: "Europa é paz".

E fez uma referência à Catalunha, sem a mencionar diretamente. "Que sentido tem fomentar a desunião, a desagregação, a divisão dentro de Espanha quando precisamos de mais União Europeia?", questionou Sánchez. "A superação das nossas tensões territoriais derivará de um projeto coletivo de inspiração europeísta", acrescentou.

Referências a Franco

Depois dos desafios, Sánchez lembrou aquilo que Espanha conseguiu nos últimos 40 anos. "Em 1975 saímos da ditadura. Hoje somos uma das 20 democracias plenas do mundo e 40 anos depois, o governo espera cumprir a Lei de Memória Histórica e também à exigência desta casa, porque uma democracia não pode ter um mausoléu dedicado ao ditador", afirmou, ouvindo a terceira salva de aplausos do debate de investidura.

O líder socialista propõe, nesta legislatura, começar a "segunda grande transformação em Espanha". Sánchez disse que Espanha construiu "um dos sistemas de saúde mais eficientes do mundo", mas que diante dos novos desafios propõe uma aposta na Educação. "Proponho um acordo que garanta que o investimento educativo seja 5% do PIB", referiu, acrescentando que este deve ser independentemente do partido que esteja no governo.

"A educação abre-nos as portas do que somos como pessoas, não é só um veículo de consciência democrática e respeito", referiu, apresentando aquele que seria o segundo pacto de Estado.

"Os seis desafios expostos devem ser enfrentados com urgência, se não queremos que Espanha perca o comboio do progresso", defendeu Sánchez.

Em questões económicas, Sánchez lembrou que Espanha deverá crescer acima de 2,2% que tinha sido inicialmente previsto. "Se algo aprendemos na última década é que não basta crescer, mas é necessário que se cresça de forma sólida e que os frutos desse crescimento sirvam para reduzir as lacerantes desigualdades da sociedade espanhola".

Emprego e formação contínua

O líder socialista quer uma criação de emprego "de qualidade e bem remunerado para que os trabalhadores possam chegar ao fim do mês" e propôs uma nova revisão do Estatuto do Trabalhador. Também quer aprovar "um estatuto do estagiário", para proteger aqueles que dão o primeiro passo no mercado de trabalho, de forma a evitar o encadeamento prolongado de períodos de estágio. E ouviu novos aplausos ao referir que quer "derrogar os aspetos mais lesivos da reforma laboral imposta em 2012", pelo Partido Popular.

Nesta parte do discurso, Sánchez recuou para os seis desafios que enumerou antes e anunciou alguns dos planos que pretende implementar para responder a eles.

A nível laboral defendeu também uma lei de igualdade no mercado de trabalho, políticas ativas de emprego para garantir a formação contínua, melhorar as condições dos trabalhadores por conta própria, a recibos verdes, melhorando a proteção social a este grupo, de forma a equipará-los aos trabalhadores por conta de outrem. Defendeu ainda um grande pacto para a racionalização dos horários, de forma a melhor combinar o trabalho com a vida familiar e social.

Sánchez defendeu ainda converter Espanha "no primeiro país europeu que reconheça o direito à educação ao longo de toda a vida", lembrando que se antes se passava as duas primeiras décadas da vida na formação, agora é necessário que esta seja contínua. Lembrou que isso vai implicar um esforço e uma mudança muito importante e intensa, para garantir que os cidadãos têm a opção de se reciclar quando precisem.

Revolução tecnológica e transição ecológica

Voltando ao segundo desafio, o da revolução tecnológica, lembrou que Espanha é o país europeu com maior cobertura de fibra ótica até aos lares (77,4%), indicando que só em Espanha há mais fibra ótica que na soma das grandes economias europeias. "Temos as melhores chaves do futuro", afirmou, defendendo chegar a pelo menos 2% do PIB (a média europeia) em investimento em investigação, desenvolvimento e inovação.

Sánchez quer ainda que esta legislatura seja a do "pacto pela ciência", com um investimento de 2% do PIB. "Criaremos uma entidade pública de financiamento da inovação, o empreendimento, a transformação digital e a transição ecológica", afirmou o socialista, que quer aprovar uma lei de startups.

Quanto ao terceiro desafio, Sánchez lembrou que a emergência climática é um "desafio global", mas também que há enormes vantagens, defendendo a aprovação de uma lei de alterações climáticas e transição energética. O líder socialista quer atuar a nível internacional na vanguarda da resposta multinacional ao desafio, mas também a nível estatal, a nível corporativo e a nível cidadão.

O candidato à investidura defendeu ainda que as cidades com mais de 50 mil habitantes tenham zonas de baixas emissões, numa defesa de sistemas como o "Madrid Central", onde o uso dos carros é exclusivo dos residentes, que o governo madrileno agora liderado pelo PP a querer recuar.

"Ninguém vai parar Madrid Central", diz Sánchez. "Não podem ser dados passos atrás, é uma irresponsabilidade absoluta expor Espanha ao risco de sanções por parte da União Europeia. E uma irresponsabilidade ainda maior renunciar ao direito dos cidadãos a respirar ar limpo", acrescentou.

A nível prático, Sánchez quer por exemplo uma nova lei de plásticos de uso único.

"Não queremos manadas"

O quarto ponto é um compromisso com a causa feminista e a defesa da igualdade. Sánchez voltou a lembrar os números negros da violência de género em Espanha: "Não se trata de melhorar esses números, mas de conseguir que não haja uma só mulher morta por esta causa", defendeu.

Sobre a violação, Sánchez deixou claro: "Para o meu governo não pode existir uma relação sexual sem o consentimento expresso da mulher", E acrescentou: "O silêncio não equivale a uma afirmação e, por isso, anuncio que vamos modificar a tipificação dos crimes sexuais, porque uma violação é uma violação." E concluiu, sob o aplauso dos deputados, "Não queremos manadas nem lobos solitários nas ruas do nosso país."

O líder socialista referia-se ao caso famoso da violação durante as festas de San Fermín, em Pamplona, em julho de 2016. Os cinco responsáveis, que se autointitulavam Manada num grupo de Whatsapp, foram inicialmente condenados apenas por abuso sexual da jovem de 18 anos, não de violação ou agressão sexual. O Supremo Tribunal reverteu a decisão.

Sánchez anunciou ainda uma lei de famílias "que dará resposta às novas realidades, como as famílias numerosas do nosso tempo, as famílias monoparentais, os partos múltiplos e as famílias de acolhimento".

Justiça social

O líder socialista defendeu que o quinto eixo de atuação não é uma escolha, mas uma necessidade para o progresso da sociedade. "São necessários mecanismos que procurem a predistribuição da riqueza, além da redistribuição", defendendo o "fortalecimento do rendimento de inserção estável".

Sánchez defendeu ainda um grande pacto nacional contra pobreza infantil, com a promessa de reforçar a educação pré-escolar, com a universalização da educação dos 0 aos 3 anos. "Queremos que Espanha se converta no melhor país do mundo para ser criança, desde o direito à educação até ao direito a brincar", indicou.

Quanto aos idosos, defendeu a teleassistência avançada para que os mais velhos "possam continuar a viver nas suas casas se assim o desejarem", prometendo recuperar o financiamento estatal, "que lamentavelmente foi cortada".

Quanto aos desequilíbrios regionais, Sánchez disse que se reduziu a desigualdade entre os territórios graças à descentralização. "Não é necessário garantir apenas a coesão social, mas também a coesão territorial. Conseguir que os direitos sejam iguais para todos os cidadãos, vivam onde vivam", afirmou. "Comprometo-me em promover um pacto estatal sobre infraestrutura e transporte que garanta o cumprimento dos planos ferroviários", disse.

"Já demos os primeiros passos a recuperar o diálogo constante com as comunidades autónomas na anterior legislatura. Um diálogo imprescindível para enfrentar a depopulação ou o desafio demográfico."

Europa unida

Em relação ao sexto desafio, Sánchez falou de imigração e do resgate de 50 mil pessoas por parte das autoridades espanholas. "A nossa política migratória tem sido eficaz", lembrou, dizendo que as entradas no país caíram 27% em relação ao ano anterior. "Temos que promover um sistema de asilo a nível europeu", afirmou o líder socialista.

Dentro da Europa unida, Sánchez falou da importância de "uma Espanha autonómica" numa "Europa federal". E lembrou: "ninguém é menos espanhol, menos catalão, menos andaluz, por ser europeu."

"A Europa é o maior espaço de solidariedade, de justiça social e de democracia de todo o planeta", referiu Sánchez.

Falando no momento "transcendental" que vive a União Europeia, numa referência ao Brexit, disse que Espanha é um "interlocutor único e idóneo". E defendeu um orçamento comum europeu, dizendo que desde o governo assume o compromisso "firme e determinado de avançar na Europa Social".

Sánchez defendeu ainda que o ideal da Europa "vive muito mais além das suas fronteiras", colocando Espanha como "interlocutor único pela sua ligação à América Latina". Falou especificamente da Venezuela e na necessidade de continuar a iniciativa de diálogo para encontrar uma solução para o problema.

Em relação à Defesa, lembrou a presença dos militares de Espanha em 15 missões internacionais e anunciou um aumento progressivo do orçamento de Defesa.

"Lei mordaça" ou eutanásia

Sánchez defendeu derrogar a chamada "lei mordaça", que sanciona manifestações junto ao Congresso e Senado, fotografas ou gravar políticas ou travar um despejo ou o maltrato animal. Algo que deverá agradar ao Podemos.

O líder socialista propôs ainda regular o direito a uma morte digna e à eutanásia, assim como promover uma lei de bem-estar animal.

Sánchez propôs também um pacto de Estado para a reforma da justiça. "É necessário uma nova lei de processo criminal, é necessário avançar num novo sistema de acesso ao judiciário", afirmou, defendendo ainda uma nova lei de testemunhas e denunciantes de casos de corrupção "para que quem denuncia casos de corrupção possa sentir-se protegido".

"Espanha não se divide em 17 comunidade autónomas e duas cidades autónomas, Espanha une-se na sua diversidade desde 17 comunidades autónomas e duas cidades autónomas. Essa é a Espanha em que acreditamos. O nosso melhor momento está por chegar. Para construir essa Espanha peço a confiança da Câmara", disse, antes do apelo final a Unidas Podemos e aos partidos conservadores.

Debate começa à tarde

No seu discurso, Sánchez não tinha tempo limite para a intervenção, ao contrário dos líderes dos restantes grupos parlamentares que começam a intervir a partir das 16.00 (15.00 em Lisboa). Podem intervir, do com mais representantes para o com menos representantes (o último será contudo o PSOE de Sánchez, só amanhã, antes da primeira votação), num total de 43 minutos: 30 minutos iniciais, seguindo-se nova resposta o líder socialista, mais 10 minutos, e nova resposta de Sánchez, e finalmente os três minutos finais.

Os deputados independentistas da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) levaram flores amarelas para o hemiciclo, para lembrar os quatro deputados do partido e do Junts per Catalunya (JxCat) que estão presos a aguardar o resultado do julgamento por rebelião, sedição e peculato na organização do referendo de 1 de outubro de 2017 e consequente declaração unilateral de independência.

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