Parlamento assume as rédeas do processo do Brexit

Governo de Theresa May sofre derrota e, na quarta-feira, Parlamento tem precedência sobre o Executivo para estabelecer a agenda no sentido de debater e votar caminhos alternativos sobre a saída do Reino Unido da UE. Três secretários de Estado demitiram-se para apoiar emenda Letwin e Jeremy Corbyn aplaudiu resultado do voto
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A câmara dos Comuns aprovou esta segunda-feira à noite a emenda que visava transferir para o Parlamento controlo sobre o Brexit. A proposta interpartidária, que tinha à cabeça o conservador Oliver Letwin, pretendia dar ao Parlamento britânico precedência sobre o governo de Theresa May para estabelecer a agenda parlamentar para quarta-feira, no sentido de debater e votar caminhos alternativos sobre a saída do Reino Unido da União Europeia.

A emenda foi aprovada por 329 votos a favor e 302 contra. A diferença foi de 27. Entre os que apoiaram a emenda de Letwin está o secretário de Estado do Comércio, Richard Harrington, que se demitiu do governo. A demissão de Harrington, avançam os media britânicos, estava na calha há já várias semanas. Segundo Mary Creagh, do Labour, também o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Alistair Burt, votou a favor da emenda de Letwin. Além destes, também o secretário de Estado da Saúde, Steve Brine, se demitiu, confirmaram fontes do governo, citadas pelo Guardian. Foram 30 os rebeldes do Partido Conservador a apoiar a emenda Letwin esta segunda-feira à noite. E oito os trabalhistas a votar contra a mesma.

Segundo fontes citadas pela Reuters e pelo Guardian, os deputados conservadores eurocéticos rebeldes indicaram que votariam contra todas as emendas submetidas a votação esta segunda-feira. E o seu líder e líder do think tank European Research Group (ERG), Jacob Rees-Mogg, terá dito numa reunião com apoiantes que apoiará o acordo do Brexit de Theresa May, se o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte (DUP) também o fizer. Até agora, por causa do controverso ponto relativo ao backstop, o DUP, partido de que May depende para ter maioria absoluta na câmara dos Comuns, tem recusado fazê-lo.

Os deputados votaram ainda noutra emenda que foi apresentada pela ex-ministra dos Negócios Estrangeiros Margaret Beckett, também ela do Labour. Esta ia no sentido de ordenar que caso não fosse aprovado um acordo do Brexit até 5 de abril o governo pudesse convocar o Parlamento com caráter de emergência para dar aos deputados a escolha de sair da UE sem acordo ou de pedir uma nova extensão do Artigo 50º a fim de evitar uma saída sem acordo e dar tempo aos deputados para determinarem uma abordagem diferente. Essa proposta, que deixava "opções em aberto", foi rejeitada por 314 votos contra e 311 a favor. A diferença foi de apenas três votos.

A emenda do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn, que também tinha sido aceite pelo speaker do Parlamento, John Bercow, foi retirada da votação. Ia no sentido de exortar o governo a dar tempo parlamentar suficiente esta semana para se realizarem votos indicativos sobre uma série de opções alternativas à estratégia do governo. "Congratulo esta câmara por ter recuperado o controlo", declarou Corbyn, após votação da moção principal, que resultou basicamente na confirmação da aprovação da emenda Letwin. Numa noite de votação, em que ainda houve tempo para cantar os parabéns a um deputado que fazia anos, o líder trabalhista instou o governo de May a "levar este processo a sério".

Numa reação à aprovação da emenda Letwin, o governo, através do gabinete do ministro do Brexit fez saber, em comunicado, que "é uma desilusão ver esta emenda ser aprovada, tendo o governo assumido o compromisso de iniciar um processo para encontrar uma maioria no Parlamento sobre o caminho a seguir no curso desta semana. Esta emenda vem alterar o equilíbrio entre as nossas instituições democráticas e abrir um precedente perigoso e imprevisível para o futuro".

O mesmo comunicado prossegue dizendo: "Enquanto os próximos passos cabem agora ao Parlamento, o governo vai continuar a pedir realismo - qualquer opção considerada deve ser passível de negociação com a UE. O Parlamento deve ter em conta o tempo que essas negociações poderiam levar e que, se pedir uma extensão mais alargada, isso significaria a realização de eleições europeias [no Reino Unido]". Este escrutínio realiza-se entre 23 e 26 de maio e, de momento, a distribuição de lugares no Parlamento Europeu já não estava a contar com deputados britânicos.

Tudo isto acontecia com John Bercow aos gritos, pedindo Ordem, Ordem, Ordem ou mandando calar diretamente alguns membros da câmara dos Comuns. Greg Hands, conservador, foi um deles. Protestou e exigiu ser tratado com respeito, forçando o speaker da câmara dos Comuns a pedir-lhe desculpa.

May admite não ter apoio para terceiro voto sobre acordo do Brexit

Horas antes desta votação noturna, Theresa May admitira no Parlamento que não existe apoio suficiente para levar o acordo do Brexit - fechado entre Londres e a UE27 em novembro - a uma terceira votação na câmara dos Comuns esta semana. Isto depois de já ter sido rejeitado duas vezes, uma a 15 de janeiro, outra a 12 de março.

"Não há apoio suficiente nesta câmara para submeter o acordo a uma terceira votação", declarou a líder conservadora, começando a sua intervenção no Parlamento britânico dando conta dos resultados do Conselho Europeu na passada semana. May foi forçada a reconhecer a falta de apoio nomeadamente depois da recusa do DUP em aprovar o acordo por considerar que nada mudou em relação ao backstop, ou seja, mecanismo de salvaguarda destinado a evitar o regresso de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda depois da saída do Reino Unido da União Europeia.

"Antes do Conselho Europeu escrevi ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, a pedir alterações ao backstop e uma extensão do Artigo 50º. E ainda tendo em conta a sua posição, senhor speaker [John Bercow], de que o acordo do Brexit tinha que ser alterado para ser levado a nova votação. Tive que pedir uma extensão do Artigo 50º. O que lamento ter feito. Queria que deixássemos a União Europeia a 29 de março", declarou May, avisando os deputados: "O que quer que aconteça esta semana todos devem estar seguros de que alterar o acordo de retirada não é uma opção".

Possível rebelião na votação para alterar data do Brexit

May lembrou as condições da extensão concedida pela UE27 ao Reino Unido: "Se esta câmara aprovar o acordo esta semana sairemos até 22 de maio. Se a câmara não aprovar o acordo sairemos a 12 de abril". A primeira-ministra informou ainda que o governo já depositou o instrumento legal para mudar a data do Brexit. "A data para a nossa saída já foi alterada a nível internacional, mas se não for aprovada a alteração contida no instrumento legal isso representará confusão legal, embora não vá alterar a data agora reconhecida a nível internacional para o Brexit".

No instrumento legal depositado lê-se: "O regulamento 2 emenda a definição de "data de saída" na secção 20(1) e (2) do Ato de 2018 para garantir que o dia e a hora especificados nessa definição é 11.00 da noite de 22 de maio de 2019 ou 11.00 da noite de 12 de abril de 2019, dependendo de se a câmara dos Comuns aprova o acordo de saída em tempo válido. Isto reflete o novo dia e hora a que os tratados deixarão de se aplicar ao Reino Unido à luz da extensão". May informou esta tarde, no Parlamento, que a alteração da data do Brexit será levada a votação esta quarta-feira.

Segundo avança o Financial Times, mesmo se a alteração da data do Brexit já está reconhecida a nível europeu, May enfrenta uma possível rebelião na votação sobre o assunto na quarta-feira. "Muitos vão votar contra por uma questão de princípio", disse uma fonte citada pelo jornal britânico, sublinhando que esta será uma maneira de mostrar que até os apoiantes mais leais do governo são contra o adiamento do Brexit, inicialmente previsto para dia 29 de março.

Num artigo publicado no site Public Law for Everyone, Mark Elliot, professor de Direito Público na Universidade de Cambridge, explica que o Parlamento britânico precisa alinhar a definição de data de saída contida na legislação de saída de 2018 com a definição contida nas conclusões do Conselho Europeu da semana passada. Se os deputados rejeitarem a alteração da data, nota o académico, isso "colocará as pessoas numa posição intolerável e criará uma enorme confusão, mesmo se, em termos legais, a prioridade das decisões da UE é clara".

O processo dos votos indicativos

Na sua intervenção, May criticou a emenda que iria ser apresentada à noite por Oliver Letwin, especificando que o governo não iria apoiá-la. A chefe do governo conservador avisou que os votos indicativos podem levar a resultados que podem não ser passíveis de negociação com a UE porque o Reino Unido é apenas uma parte da equação. E indicou que o governo britânico não se compromete em implementar qualquer resultado que saia desses votos indicativos. "O governo não pode dar um cheque em branco a qualquer coisa que venha a ser votada", reafirmou, sugerindo que uma das decisões por voto indicativo que poderia recusar seria a de organizar um segundo referendo sobre o Brexit.

Segundo disse o próprio Letwin, no Parlamento, o processo dos votos indicativos "não é nenhum tipo de revolução constitucional", mas "uma oportunidade para a câmara dos Comuns começar o processo de trabalhar no sentido de identificar um caminho para formar uma maioria nesta câmara".

May, cuja intervenção foi várias vezes interrompida e obrigou à intervenção do speaker da câmara, John Bercow, para pedir ordem, enumerou as opções que ainda existem em cima da mesa em aberto, como sejam um segundo referendo, uma extensão maior do Artigo 50º que obrigará os britânicos a participar nas eleições europeias de maio e que, sublinhou, levarão o Reino Unido para um soft Brexit no qual não votou.

Reagindo à intervenção da primeira-ministra, o líder do Partido Conservador, Jeremy Corbyn, declarou: "o Brexit é agora um embaraço nacional, com promessas falhadas atrás de promessas falhadas, as propostas da primeira-ministra foram rejeitadas pelo Conselho Europeu e novas condições foram-lhe impostas". O líder do Labour acusou a líder dos Tories de não procurar um consenso entre os vários partidos, ignorar largas partes do Reino Unido, bem como as pessoas que se têm manifestado [a favor de um voto popular] e assinado petições [a favor da revogação do Artigo 50º]. E desafiou May a declarar que o seu acordo está morto. Algo que ela não fez. Pois disse ainda esperar que a aprovação seja possível.

"O governo não tem um plano. Para si é tudo uma questão de pôr os interesses do Partido Conservador à frente dos interesses do país. É tempo de o Parlamento assumir o controlo. Vamos, por isso, apoiar a emenda que vai ser apresentada mais tarde", anunciou Jeremy Corbyn. atestando: "É tempo de limpar esta trapalhada. É tempo de o Parlamento trabalhar num Plano B e, em conjunto, acredito que vamos ser bem sucedidos onde o governo falhou".

Constatando que a UE anunciou hoje a conclusão dos seus preparativos para um No Deal Brexit, o líder parlamentar do DUP, Nigel Dodds, questionou-se porque é que são necessárias mais duas semanas. "O que vai mudar em duas semanas?", questionou-se. E afirmou que, pela primeira vez, parece estar a ver a primeira-ministra justificar o pedido de extensão do Artigo 50º com a necessidade de mais tempo para preparar um No Deal Brexit.

O líder parlamentar do Partido Nacionalista Escocês (SNP), Ian Blackford, sublinhou que todo este processo é um embaraço para o governo e insistiu na tecla de que os escoceses votaram contra o Brexit no referendo de 23 de junho de 2016 e que não hesitarão em fazer um novo referendo sobre a independência da Escócia para conseguir, por essa via, permanecer na União Europeia.

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