Papa: "É uma honra para mim os americanos atacarem-me"

Francisco recebeu das mãos de um jornalista francês um livro que retrata as movimentações de setores ultraconservadores ricos americanos para escolherem um papa com um perfil mais adequado aos seus interesses.
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"É uma honra para mim os americanos atacarem-me." A frase foi dita de forma espontânea e em tom bem-humorado, quase malandro, pelo Papa Francisco, quando recebeu das mãos de um jornalista francês um livro (Como a América quer mudar de papa), que retrata as movimentações de setores ultraconservadores americanos para escolherem um bispo de Roma com um perfil mais adequado aos seus interesses. "É uma bomba!", sorriu Francisco, segundo o relato dos jornais franceses Le Monde e La Croix .

Segundo o Le Monde, Nicolas Senèze, autor do livro Comment l"Amérique veut changer de pape (ed. Bayard éditions), que é correspondente no Vaticano do diário católico La Croix, explica os ataques sofridos por Francisco nos últimos anos, por uma forte hostilidade de um poderoso movimento católico americano conservador, liderado por leigos ricos e influentes, à sua "linha", e que são depois difundidos por poderosos meios de comunicação, que querem acabar com este parêntesis na vida da Igreja Católica que é o pontificado do papa argentino.

Sintonizados com a ascensão do conservadorismo político nos Estados Unidos e, em alguns casos, com setores extremistas da direita, irritados pela crítica virulenta e quotidiana que Francisco faz ao liberalismo económico, enquanto se manifesta a favor dos mais desfavorecidos, estes atores - que também estão entre os mais importantes financiadores do Vaticano - ensaiam um novo "golpe de Estado", na interpretação do jornalista Nicolas Senèze, apresentado como um experiente vaticanista.

Este "golpe" passa por influenciar a escolha do próximo bispo de Roma, depois de terem falhado um golpe, no verão do ano passado, que levaria à renúncia do Papa Francisco, ao tentarem envolver Jorge Maria Bergoglio (o seu nome de batismo) no escândalo dos casos de pedofilia.

Segundo Senèze, estes ricos americanos ultraconservadores batizaram a sua operação de "The Red Hat Report", numa referência ao barrete vermelho cardinalício, que os cardeais recebem das mãos do papa quando são elevados a esta função - que inclui a participação no conclave que escolhe o bispo de Roma.

Depois de ter reunido em setembro de 2018, este grupo lançou um inquérito para peneirar todos os cardeais com capacidade eletiva, ou seja, com menos de 80 anos (há 119, neste momento, mas o Papa anunciou a criação de mais 13, incluindo o português José Tolentino Mendonça).

Dilacerados pelo rumo do pontificado de Francisco, como descreve o Le Monde, o objetivo é preparar o terreno para favorecer a eleição de um papa de acordo com sua conveniência, quando chegar a hora. Essa conveniência é uma visão do mundo que exclui um papa como Francisco, que passa o tempo a denegrir "o deus do dinheiro" e o liberalismo desenfreado, a denunciar as políticas dos estados ocidentais em relação aos migrantes e que é gentil com aqueles que representam uma entorse à moral católica (homossexuais, mulheres que abortam, casais de uniões de facto, divorciados, recasados, etc.).

Em síntese: estes ultraconservadores querem, à sua imagem e semelhança, influenciar a escolha de um conservador de boa aparência que seja capaz de restaurar o que entendem ser a ordem católica de sempre e que, aos seus olhos, foi profanada por Francisco.

Perante o bruaá dos jornalistas, ao ouvirem as tiradas de Francisco no fundo do avião que levava o Papa para Moçambique, o novo diretor da Sala de Imprensa, Matteo Bruni, correu a pôr alguma água na fervura, declarando que as mesmas foram ditas "no contexto informal" da viagem inicial da visita pontifícia. "O Papa quis dizer que sempre considera as críticas como uma honra, especialmente quando elas vêm de pensadores reconhecidos e, neste caso, de uma nação importante."

Se Francisco procurou suavizar o tom da sua declaração, não negou a substância das suas palavras. Os ataques reiterados ao bispo de Roma existem e vêm dos setores mais tradicionalistas, não apenas americanos, constata o jornal Le Monde.

O Papa não foi apanhado de surpresa: Francisco teve tempo de confidenciar ao jornalista que já tinha procurado pelo livro, mas que ainda não estava disponível. Está agora - nas mãos do Papa e nas livrarias francesas.

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