Navios sabotados no golfo de Omã, um petroleiro apreendido ao largo de Gibraltar e trocas de palavras cada vez mais inflamadas entre Teerão e Washington. Com um país cada vez mais desesperado de um lado e um líder imprevisível do outro ninguém arrisca o desenlace da crise iraniana..O Irão anunciou no dia 8 de maio uma retirada parcial de alguns aspetos do acordo nuclear, ao informar que o país não iria observar alguns dos limites impostos às suas atividades nucleares. Ameaçou igualmente aumentar o enriquecimento de urânio se não for concluído um acordo no prazo de 60 dias para proteger o país dos efeitos das sanções impostas pelos Estados Unidos, com o prazo a terminar no dia 7 de julho..Por outro lado, a Organização de Energia Atómica do Irão anunciou em 17 de junho que o arsenal de urânio pouco enriquecido do Irão iria exceder 300 quilos até 27 de junho. Tal acabou por acontecer no dia 1 de julho, confirmou a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA)..Porque reage o Irão?.A República Islâmica decidiu reduzir os seus compromissos relativos ao acordo nuclear (oficialmente Plano de Ação Conjunto Global, também conhecido pela sigla em inglês JCPOA) em protesto contra a saída unilateral dos Estados Unidos do acordo, um ano antes, e pelo regresso total das sanções antes aplicadas, em novembro de 2018. Até porque quem não cumpriu em primeiro lugar a sua parte no acordo foram os EUA. Quando o primeiro-ministro japonês se encontrou com o guia supremo iraniano, Ali Khamenei, Shinzo Abe transmitiu duas mensagens de Washington: que os Estados Unidos foram sinceros ao desejar uma negociação e que são sinceros quando dizem não querer uma mudança de regime. Khamenei respondeu que não se pode usar a palavra "sincero" na mesma frase que "negociação", porque foi o presidente Barack Obama quem em primeiro lugar não aplicou integralmente o JCPOA. "É uma afirmação inteiramente verdadeira. Os Estados Unidos não fizeram o que deveriam ter feito, que era facilitar a normalização económica e financeira com o Irão", reconheceu o ex-embaixador britânico em Teerão Richard Dalton, numa sessão na Câmara dos Lordes..Mas o Irão também está a pressionar os restantes signatários do acordo nuclear deixando ao mesmo tempo a porta entreaberta. Ainda no domingo, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad Zarif, disse que as medidas tomadas na redução do compromisso para com o acordo são reversíveis se os signatários europeus se mostrarem fiéis ao pacto. "Todos os passos dados pelo Irão podem ser revertidos através da adesão dos três países europeus" que fazem parte do acordo, afirmou Zarif no Twitter..Para que serve o acordo nuclear?.A revolução islâmica de 1979 congelou o programa nuclear, iniciado anos antes no tempo do Xá, que se tinha comprometido como um país livre de armas nucleares. Mas no final dos anos 80 o programa foi retomado. A questão ganhou outras proporções em 2002 quando um grupo dissidente iraniano revelou a existência de duas instalações nucleares secretas. Esforços diplomáticos levaram a que Teerão cooperasse com a agência atómica da ONU, mas com a chegada ao poder de Mahmoud Ahmadinejad a situação inverteu-se. O Irão é alvo de várias resoluções - e sanções - da ONU e o presidente norte-americano Barack Obama revela a existência de uma instalação subterrânea de enriquecimento nuclear, em Fordow..É neste quadro, e já sem Ahmadinejad no poder, que se iniciam negociações entre o Irão e o chamado P5+1, ou seja, os cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança (EUA, China, Reino Unido, Rússia e França) mais a Alemanha, embora a União Europeia também tenha sido parte ativa e signatária do acordo concluído em julho de 2015. O objetivo é supervisionar o programa nuclear iraniano e limitá-lo em níveis que impeçam o regime de fabricar armas nucleares em menos de um ano - apesar de Teerão continuar a afirmar que não é esse o objetivo do programa..Que limites foram impostos ao Irão?.O maior obstáculo à produção de armas nucleares é a obtenção de material físsil suficiente para o núcleo da bomba, urânio altamente enriquecido ou plutónio. O acordo limita o nível de pureza ao qual o Irão pode enriquecer hexafluoreto de urânio, a matéria-prima para centrifugadoras, em 3,67%, muito abaixo dos 90% de grau de pureza necessário. Também está bem abaixo do nível de 20% para o qual o Irão enriqueceu urânio antes do acordo. O limite de 3,67% dura 15 anos..O Irão tem dois locais de enriquecimento, em Natanz e Fordow. O acordo transforma Fordow num "centro nuclear, físico e tecnológico" em que as centrifugadoras são utilizadas para outros fins que não o enriquecimento, como a produção de isótopos estáveis. O JCPOA também reduz o número de centrifugadoras instaladas de 19 mil para seis mil. O acordo limita o arsenal de urânio pouco enriquecido em 300 quilos de hexafluoreto de urânio enriquecido em 3,67% ou o seu equivalente por 15 anos. O Irão produziu toneladas antes do acordo, tendo exportado o excesso em troca de urânio natural. Além disso, o Irão estava a construir um reator de água pesada em Arak, a partir do qual poderia ter acabado por produzir combustível no qual se extraísse plutónio. O acordo tornou impossível a produção de plutónio para fins militares. Embora possa continuar a produzir água pesada, que se utilizada em reatores como o de Arak, o seu stock fica limitado a cerca de 130 toneladas..Porque saíram os EUA do acordo?.A saída unilateral dos EUA inscreve-se na política de Donald Trump em tentar rasurar tudo o que ficou com a marca do antecessor, Barack Obama, seja na política interna ao tentar pôr fim ao programa de saúde que ficou conhecido como Obamacare, seja na política externa, com a saída do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas. Trump já dizia na campanha eleitoral que o acordo "é o pior de sempre". Na Casa Branca, uma vez trocado o secretário de Estado Rex Tillerson e o conselheiro de segurança nacional H.R. McMaster pelos falcões Mike Pompeo e John Bolton, respetivamente, Trump avançou para a retirada unilateral, tendo alegado que o acordo não é permanente (algumas restrições são levantadas em 2025, mas a proibição de construir armas nucleares é permanente), que não envolvia limitações ao programa balístico iraniano e ao seu apoio a grupos terroristas como o libanês Hezbollah. Começava a campanha norte-americana de "máxima pressão"..Quais são as 12 exigências dos EUA?.Duas semanas depois do anúncio de Donald Trump, Mike Pompeo listou uma dúzia de exigências que Teerão teria de cumprir para um novo acordo nuclear. São elas: declarar à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) um relato completo das dimensões militares anteriores do seu programa nuclear e abandonar de forma permanente e verificável esse plano; parar o enriquecimento de plutónio e nunca prosseguir com o reprocessamento de plutónio, o que inclui o encerramento do seu reator de água pesada; proporcionar à AIEA um acesso sem reservas a todos os locais; acabar com a proliferação de mísseis balísticos e parar o lançamento ou desenvolvimento de sistemas de mísseis nucleares; libertar todos os cidadãos dos EUA, bem como os cidadãos dos seus parceiros e aliados; acabar com o apoio a grupos como o Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica; pôr termo ao apoio aos talibãs e a outros terroristas no Afeganistão e deixar de albergar dirigentes da Al-Qaeda; acabar com o apoio a terroristas e combatentes em todo o mundo por parte da Força Quds, ligada ao corpo dos Guardas da Revolução; acabar com o apoio militar aos rebeldes Houthi e trabalhar para uma solução pacífica e política no Iémen; respeitar a soberania do governo iraquiano e permitir o desarmamento, desmobilização e reintegração das milícias xiitas; retirar todas as forças sob o comando do Irão na Síria; e acabar com o "comportamento ameaçador" contra países vizinhos como Israel e Arábia Saudita..Segundo o diplomata Richard Dalton, Teerão aceitar esta lista "equivaleria à renúncia do Irão à sua autonomia de agir externamente e o tipo de humilhação com que nenhum Estado concordaria, a menos que tenha sido completamente derrotado na guerra"..Quem alinha com os Estados Unidos?.A chegada de Donald Trump à Casa Branca foi festejada em várias chancelarias do Médio Oriente, tendo em conta as más relações de Barack Obama quer com o israelita Benjamin Netanyahu quer com vários líderes árabes, em especial desde o momento em que o democrata sinalizou o apoio à Primavera Árabe no Egito e na Síria. "Sem querer, Obama contribuiu muito consideravelmente para a construção de relações entre nós e os Emirados Árabes Unidos e os sauditas", disse ao The Guardian um dirigente israelita..Por outro lado, as rivalidades entre o mundo sunita e xiita ganharam uma nova dimensão no início do século, quando a queda de Saddam Hussein no Iraque trouxe à tona uma política de "crescente xiita" de Beirute a Teerão passando por Damasco e Bagdade. No mesmo texto de Ian Black, ex-editor do Guardian e agora investigador do Middle East Centre, o ponto de viragem que pôs a República Islâmica do Irão de costas voltadas com a maioria dos vizinhos, em especial Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, foi a guerra do Líbano em 2006. O conflito começou depois de uma incursão do Hezbollah em território israelita ter matado três soldados israelitas e raptado outros dois. "Uma aventura mal calculada", reagiu Riade. Começou uma aproximação não oficial, que tem durado até hoje, entre Telavive e alguns países com os quais não tem relações oficiais, mas que mantém uma estratégia de defesa e de partilha de tecnologia e informação para conter um inimigo comum: o Irão..Quem está com os iranianos?.Os países europeus querem manter o acordo nuclear, bem como a Rússia e a China. Estas duas potências, em especial a Rússia, tem uma relação ao nível militar e de segurança, dada a cooperação conjunta na Síria e o facto de Moscovo dar cobertura a Teerão no Conselho de Segurança da ONU. A Rússia não considera necessário que os EUA concedam isenções para prosseguir a sua política comercial no que se refere às instalações nucleares do Irão. As empresas russas estão no Irão sem restrições. Já."Do ponto de vista do Irão, os iranianos entendem que não podem confiar plenamente na China ou na Rússia para defender o seu ponto de vista junto de Washington e diretamente na Casa Branca. Para a Rússia e a China, o Irão é apenas uma parte de um quebra-cabeças muito maior de negociações em curso com os Estados Unidos e será o cordeiro a sacrificar, se necessário", comenta Ellie Geranmayeh, especialista em assuntos do Médio Oriente da European Council on Foreign Relations, na Câmara dos Lordes..Que podem fazer os europeus?.As sanções de Washington não só punem o Estado e as organizações iranianas mas também as empresas norte-americanas que queiram fazer negócios na antiga Pérsia. As chamadas sanções secundárias são destinadas a dissuadir as empresas não norte-americanas de fazer negócios com o Irão, ao ameaçá-las com pesadas multas e/ou a proibição de trabalhar com empresas norte-americanas, o que acabou por resultar no sufoco económico ao Irão, com as vendas de petróleo a caírem e a economia a contrair 6% em 2019, segundo as previsões do FMI. Empresas do ramo automóvel como a Peugeot e a Daimler ou do ramo petroquímico como a Total fecharam portas no Irão..Em resposta, Alemanha, França e Reino Unido criaram um canal de pagamento especial, chamado de Instex, para contornar as sanções dos EUA e continuar o comércio com o Irão. O mecanismo foi criado em janeiro, mas até agora não dera qualquer resultado. "Uma piada amarga", comentou o guia supremo iraniano do Instex. Cinco meses depois, a União Europeia anunciou que da reunião da JCPOA realizada em Viena, a França, a Alemanha e o Reino Unido informaram os participantes de que o Instex tinha ficado operacional e disponível para todos os Estados membros da UE e que as primeiras transações estavam a ser processadas. Confirmaram que alguns Estados membros da UE estavam em vias de aderir como acionistas ao Instex.."A primeira transação será limitada, mas este é um ponto de partida e esperamos que o Instex seja uma ferramenta eficiente", disse o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire. Inicialmente o sistema só negociará produtos como medicamentos e alimentos, que não estão sujeitos às sanções dos EUA. As autoridades iranianas têm repetido que o Instex deve incluir as vendas de petróleo ou fornecer facilidades de crédito substanciais para que seja benéfica. "Este mecanismo sem dinheiro é como um carro lindo sem gasolina", comparou o embaixador iraniano nas Nações Unidas, Takht Ravanchi.