O andebolista do Vitória de Setúbal que agora pilota aviões no Cazaquistão
"Vivo hoje entre Nur Sultan, o Dubai e Sesimbra. E já me habituei", conta Marco Quadrado, piloto português da Air Astana. Desde 2017 que este alcochetense de 45 anos trabalha para a grande companhia aérea do Cazaquistão, que mantém o nome Astana, que era como a capital se chamava até há uns meses ter sido rebatizada de Nur Sultan, em homenagem ao primeiro presidente e pai da independência em 1991, Nursultan Nazarbaiev. "O povo do Cazaquistão é acolhedor, simpático. Não há grandes constrangimentos culturais para um estrangeiro. Mesmo sendo um país de maioria muçulmana, é muito liberal. Basta ver como se vende vinho em todo o lado, até português", sublinha, enquanto pede um café no bar do Radisson, hotel que fica mesmo ao lado da embaixada de Portugal nesta antiga república soviética da Ásia Central.
Nisto de lidar com outras culturas, Marco já tem experiência, pois esteve algum tempo a trabalhar para uma companhia aérea saudita. "Era uma empresa que dependia da companhia aérea nacional e só transportava membros da família real e as suas comitivas. Claro que o rei não, pois esse tem o seu próprio avião, esclarece o piloto. A rota era sempre Riade-Jidá e vice-versa e os dias mais descontraídos eram os passados na cidade do Mar Vermelho, onde há praias privadas que os estrangeiros podem frequentar. Riade segue um islão mais rigoroso, comento com Marco, pois digo-lhe que estive há um ano na capital saudita e já com a abertura de costumes promovida pelo príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman em andamento.
Descobrimos também ter em comum o carinho pelo Vitória de Setúbal. E falamos de alguns nomes do clube com grande entusiasmo, para surpresa de Adelino Silva, o Encarregado de Negócios. Foi o diplomata quem nos apresentou, sabendo que Marco estava num intervalo entre voos.
"Joguei primeiro no Palmeiras e depois nos juvenis, nos juniores e nos seniores do Vitória. Fomos sempre campeões regionais e acho que chegámos a ficar em oitavo no campeonato nacional", conta o piloto da Astana, recordando que uns anos antes a equipa de andebol setubalense tinha sido mais forte, "com aquele guarda-redes enorme, um gigante polaco, como é que se chamava mesmo? Tinha sido polícia de choque.". Entretanto, e depois de completar o 12.o ano no Montijo, Marco começou a trabalhar como assistente de logística na AutoEuropa. E era essa a sua vida na grande fábrica automóvel em Palmela quando respondeu a um anúncio da Air Madeira a pedir comissários de bordo.
"Lá fui para comissário de bordo na Air Madeira, que hoje é a EuroAtlantic. E descobri que gostava muito de voar. Apaixonei-me. Aliás, tinha sido só com 16 anos que andei pela primeira vez de avião, numa ida do Vitória ao Funchal". Uns amigos desafiaram-no para a hipótese de estudar para piloto, "uma coisa que ao princípio parecia de outro mundo, mas que aconteceu naturalmente". Pegou nas economias que tinha, teve uma ajuda dos pais, e inscreveu-se em Tires numa escola de aviação, a Aerocondor. "Ainda me lembro que paguei oito mil contos. Era muito dinheiro, mas fiz o curso cheio de entusiasmo. Ao fim de ano e meio mais coisa menos coisa tinha o brevet", recorda o alcochetense, que agora ambiciona com a sua experiência, e tantas horas de voo acumuladas, passar de co-piloto a comandante.
Para se chegar a piloto de um grande companhia, é preciso acumular experiência. Marco começa por ser instrutor, voa em aviões pequenos, depois em 2006 candidata-se à sua velha conhecida Air Madeira, entretanto rebatizada de EuroAtlantic Airways. "Fiz o curso do Boeing 767, depois do 757 e estive lá um ano. Fiz 800 horas de voo, fiz uma operação de levar peregrinos da Nigéria para Meca, também uma operação de Madrid para Buenos Aires, sempre como oficial-piloto, que é como se diz muitas vezes o co-piloto, e que tem de fazer tudo o que faz o comandante, a diferença é que este é quem toma a última decisão", conta o português.
O passo seguinte é a TAP, onde entra em 2007, passa a voar em Airbus, e fica por lá nove anos, até a oportunidade de ir para a Arábia Saudita. Além de príncipes e princesas, um dia transportou também a seleção saudita de futebol, que foi jogar à Malásia. "Era sempre aviões só com lugares de executiva", nota. Marco admite que as condições económicas foram um dos incentivos das sucessivas mudanças e que agora está feliz na Air Astana, onde pilota Airbus A319, 320 e 321 e tem um contrato que lhe permite ter alguma vida familiar: "a minha esposa é assistente de bordo na Emirates, baseada no Dubai, e os meus dois filhos vivem em Portugal. Trabalho seis semanas e depois são-me garantidas duas semanas de descanso".
Faz muitos voos internos, de até quatro horas, afinal o Cazaquistão é o nono maior país do mundo, e também para Istambul, Dubai, Pequim e Kiev. O tempo que passa em Nur Sultan agrada-lhe: "as pessoas aqui são muito acolhedoras. Claro que no inverno é muito frio. Já apanhei 45 graus negativos. Mas é engraçado que aqui, abaixo de certa temperatura, já não neva e então há dias lindíssimos, de céu limpo, em que estão talvez menos 30 graus. No verão o tempo é instável e pode estar muito quente e depois muito vento e baixar a temperatura. Em Nur Sultan há muita amplitude de temperatura".
Ouço-o falar em russo com o empregado do hotel, também umas palavras em cazaque com o taxista que nos leva ao edifício da Ópera de Astana para a fotografia. "Aqui é preciso saber um pouco de russo ou não nos safamos bem. Também umas palavras em cazaque são muito valorizadas". Tem amigos na pequena comunidade portuguesa, como Artur Vieira, outro piloto da Air Astana, casado com uma cazaque, e Alfredo Vitorino, que lidera uma empresa, a Kazytec. Marco pensa renovar contrato, até porque a empresa, diz, está em crescimento, precisa de pilotos e ele, cada vez que entra num avião, sente "a paixão de voar".
Marco ainda não se aventurou na carne de cavalo que é prato tradicional dos cazaques, povo das estepes muitos séculos nómada. "Come-se bem em Nur Sultan, há muita diversidade, mas para muita pena minha não há restaurantes portugueses. O que fazemos os portugueses é sempre que alguém vem de Portugal traz bacalhau e juntamo-nos à mesa a comer".