Moçambique: "Minha esposa e minha filha desapareceram" nas águas
Silvestre Gabriel é um dos milhares de moçambicanos apanhados pela tragédia e que viu o que nunca esperava ver: a mulher, uma filha e duas irmãs a serem arrastadas por uma corrente até perdê-las de vista durante as cheias que se seguiram ao ciclone Idai, no centro de Moçambique. Agora luta todos os dias para conseguir conviver com essa recordação. "Minha esposa e minha filha desapareceram, junto com minhas duas irmãs", conta Silvestre Gabriel, que assistiu ao desenrolar de tudo e nada pode fazer.
Silvestre Gabriel e a família passaram dois dias em árvores, perto uns dos outros, na aldeia de Dombe, distrito de Sussundenga, depois de o rio Lucite transbordar. Ao todo eram 12 membros da mesma família, na província de Manica, encostada ao Zimbábue. A determinada altura, uma canoa avistou-os, mas pouco antes de a ajuda chegar, a árvore que amparava a esposa, filha e duas irmãs de Silvestre cedeu e perdeu-se nas águas.
Silvestre fala de uma esperança que diminui a cada dia que passa, depois de ter sido encontrada uma mala, com documentos e roupas da esposa e filha, a 20 quilómetros de Dombe. Hoje é uma entre dezenas de pessoas acolhidas na missão católica da aldeia.
O motorista da missão, Aquiles Joaquim, queixa-se de uma dor que não sangra, mas que lhe pesa no espírito. O difícil convívio com as memórias instala-se agora. Naqueles dias, há duas semanas, também viu o que nunca pensou ver, mas era preciso agir, não havia muito tempo para pensar.
Ele foi o condutor que salvou algumas vidas da aldeia quando as águas subiram, improvisando um leme no lugar do volante. Desesperado, com água e lama a engolir a aldeia inteira, recorreu a uma brincadeira de infância para se salvar a si e aos outros: construiu duas canoas com troncos de bananeiras e foi atrás do choro de crianças e gritos de socorro que vinham de árvores e telhados de casas.
A embarcação improvisada por Aquiles seguia lenta, muito mais lenta do que desejava e face ao desespero deu prioridade ao salvamento de crianças. "Dói muito, ficámos muito tristes", descreve, ao falar da morosa operação de resgate a 16 de março, que não evitou que várias pessoas fossem arrastadas pelas correntes. Mas conforta-se com as 40 famílias salvas pelos seus meios, agora abrigadas numa escola da missão.
Ernesto Francisco, outro sobrevivente de Dombe, foi parar à missão agarrado a um tronco e quando conseguiu chegar ao pé de uma das canoas de bananeira de Aquiles, ainda fez oito viagens contra a corrente, salvando a esposa com um bebé no colo, outros adultos e crianças. Agora, vai recomeçar a vida do zero, pela segunda vez, depois de ter perdido tudo nas cheias de 2006, antes de ser reassentado na aldeia, agora devastada por água.
"A primeira necessidade foi dar-lhes um lugar, porque estavam bem traumatizados", disse à Lusa Miriam Santos, freira católica. "Vinham com infeções respiratórias, diarreias e malária", descreve, pelo que foi preciso providenciar alimentos, roupas e medicamentos para todos - e a comida foi reforçada, entretanto, através do Programa Alimentar Mundial (PAM).
Corpo e mente pedem ajuda: às mazelas do corpo (fome e doenças) os apoios atendem como se pode, as da mente permanecem abertas ao cuidado de cada sobrevivente.
A psicóloga portuguesa Inês Ribeiro antevê que muita população do centro de Moçambique vai ter problemas psicológicos devido ao ciclone Idai e alerta para possíveis casos de stress pós-traumático. Inês Ribeiro é psicóloga na Coordenação Nacional de Emergência da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e está na cidade da Beira para prestar ajuda aos habitantes, que sofreram e estão ainda a sofrer os efeitos do Idai.
Neste momento "o problema da mente está muito descurado ainda, porque as pessoas ainda estão muito focadas para a parte física e acabam por descurar sintomas como a ansiedade", disse, admitindo que possam surgir casos de depressão, apatia e ansiedade e que os sintomas podem surgir nas próximas semanas.
"A nossa presença aqui, depois das situações de exceção como foi o caso, é promover o retorno à normalidade da população, de forma autónoma, potenciando-a sempre com os recursos dela, que foram sujeitos a grande ativação", explicou à Lusa a psicóloga, de Coimbra. No ciclone Idai, como uma "situação excecional", as pessoas tiveram de mobilizar recursos mentais para darem resposta a essa situação, e isso pode conduzir a stress pós-traumático, alertou a especialista.
O que os psicólogos podem fazer, adiantou, é fazer com que as pessoas tenham a perceção de que esses sintomas são normais e que a partir daí possam voltar à normalidade. A verdade, adiantou, é que o que aconteceu no centro de Moçambique é "um indutor grande de stress, uma verdadeira situação de exceção".
Num caso assim as pessoas não estão suficientemente preparadas para mobilizar os seus recursos, mas têm que os mobilizar muito rápido. Para já, e segundo a informação que tem da clínica de Macurungo, na Beira, junto da qual está a trabalhar, houve um aumento de procura dos serviços de psicologia.
A psicóloga moçambicana Dália Matsinhe defende que a família, amigos e comunidades vão ser fundamentais para o amparo psicológico das vítimas do ciclone Idai, suscetíveis de desenvolver stress pós-traumático. "Quando as pessoas se veem envolvidas pelas tarefas e assuntos normais pós desastre, podem ficar stressadas. Este stress depende muito do apoio e ajuda que as vítimas sobreviventes possam ter de outros, como família, amigos e comunidades", frisou a psicóloga, mestre do ISCTE, em Portugal. Assim, "o trauma sentido não permanece apenas nas vítimas", mas pode incluir "as pessoas que assistem e se preocupam com elas e suas situações, como familiares, pessoas que assistem ou ouvem as noticias, técnicos ou assistentes de auxilio em estados de emergência".
A perda de uma base segura, como casa e comunidade, por motivos de desastres naturais, pode ter impactos psicológicos significativos, não só pelo impacto na altura da perda, mas pelo que acontece 'a posteriori', como a reconstrução. Nas crianças, a ansiedade, depressão e stress devem merecer uma atenção redobrada, apesar de esse grupo etário poder mostrar uma capacidade de resiliência surpreendente. "A boa notícia é que a maior parte das crianças são resilientes, mesmo depois de um desastre natural ou outro evento traumatizante", comentou.
O número de mortos provocados pelo ciclone Idai e as cheias que se seguiram subiu para 501, anunciaram este sábado as autoridades moçambicanas. O último balanço, apresentado pelo centro de operações de socorro na cidade da Beira, acrescenta mais oito vítimas mortais desde sexta-feira, numa altura em que foi dada como concluída (desde quinta-feira) a fase de salvamento e resgate.
O número de feridos manteve-se em 1.523, mas o total de pessoas afetadas subiu para 843.723. O grupo de pessoas afetadas inclui todas aquelas que perderam as casas, precisam de alimentos ou de algum tipo de assistência, explicaram as autoridades. O total de desalojados em centros de acolhimento mantém-se em 140,784, assim como o número de famílias beneficiárias de assistência humanitária: 29.098.
Os outros dados publicados pelo Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) que este sábado sofreram alterações foram o total de salas de aula afetadas, que subiu para 3.318, com 150.854 alunos prejudicados, e o número de casas totalmente destruídas que ascende 56.095 (com outras 28.129 parcialmente danificadas), sendo que a maioria são habitações de construção precária.
Já o número de casos de cólera detetados na cidade da Beira subiu para 271, anunciou Ussene Isse, Diretor Nacional de Assistência Médica de Moçambique, no mais recente balanço divulgado na sexta-feira. Entre quinta e sexta-feira "foram detetados 132 casos, 90 no bairro da Munhava", detalhou, no que classifica como "um surto" que já tinha sido previsto pelas autoridades, depois do ciclone Idai e das cheias que se seguiram no centro do país.
O número de casos de cólera na cidade da Beira tem crescido de dia para dia: na quarta-feira foram reportados oficialmente os primeiros cinco casos e no dia seguinte a contagem subiu para 139. Ussene Isse referiu que não há mortes confirmadas por cólera. "Estamos em prontidão máxima do ponto de vista da vigilância", que está a ser instalada noutros pontos da região centro de Moçambique, acrescentou.
A doença é propagada através de água e alimentos contaminados e o risco aumentou devido às inundações e à destruição de infraestruturas provocada pelo ciclone. A Organização das Nações Unidas (ONU) vai dar início, na quarta-feira, a um programa de vacinação oral contra a cólera naquela zona, prevendo a administração de 900 mil unidades.
Numa outra iniciativa, o Estado português iniciou na sexta-feira uma campanha dirigida à comunidade portuguesa com um lote de 600 unidades. No consulado de Portugal na Beira, no primeiro dia de vacinação, muitas dezenas de portugueses já esperavam as vacinas antes mesmo de se iniciar o processo, na manhã de sexta-feira.
Entre eles estava José Arsénio da Fonseca, um português que preocupava as autoridades portuguesas por ter estado incontactável até esta semana, desde o ciclone Idai. Mas José Arsénio, conhecido por Sequeira, que era o nome do pai, apenas quer ir para casa. Estão a fazer o quê? Perguntou à Lusa, acrescentando depois, num encolher de ombros: "Cólera? Sempre houve cólera aqui".
José Arsénio foi questionado pelos militares que estavam a promover o processo de vacinação dos portugueses se também ele não se queria vacinar, mas recusou sempre. À Lusa disse que apenas queria que o voltassem a levar para casa, de onde o tiraram na quarta-feira.
As vacinas que chegaram para a comunidade portuguesa são 600 conjuntos, cada um incluindo a cólera, mas também a poliomielite, o sarampo, a rubéola, a difteria, o tétano, a febre tifoide e a hepatite A, como explicou à Lusa o major farmacêutico João Roseiro, responsável pelo circuito da vacina até à Beira. As vacinas "fazem parte de um plano de vacinação que foi criado para os residentes em Moçambique, na região da Beira, fruto do ciclone", que foi preparado em Portugal, "juntamente com o Hospital da Forças Armadas e o Laboratório Militar", disse o responsável do Exército à Lusa, admitindo que se for necessário está previsto o envio de mais vacinas para a cidade.
João Roseiro diz que a mais importante no momento é a vacinação contra a cólera, já com 271 casos só na cidade da Beira, segundo os últimos números oficiais. "Apelamos a que todos os portugueses façam a vacinação". Nilsia Gomes foi uma das portuguesas que respondeu ao apelo e que, com o marido e dois filhos, contribuiu para uma sala cheia no consulado de Portugal. Foi o consulado que informou da iniciativa e mal abriram portas lá estava com dois filhos, os outros dois a irem também depois da escola.
"Não tínhamos cá na Beira, nunca ouvimos falar sobre a vacina da cólera, é a primeira vez que nos estamos a prevenir", disse à Lusa, explicando que ela, marido e filhos têm outras das vacinas do "pacote" e que estavam ali essencialmente por causa cólera. "A cólera é a maior preocupação, principalmente para as crianças, que são mais vulneráveis". E depois, no bairro onde vive, há casos de diarreia e mesmo o filho queixa-se de dores de barriga.
José Aguiar, empresário de venda de equipamentos para construção civil e outro dos portugueses já vacinados, não se queixa de dores de barriga, mas avisa que se algum dos seus empregados tem diarreia é "imediatamente suspenso e mandado ao médico", de preferência a uma clínica particular, porque "os hospitais estão saturados".
Aguiar já tem a maior parte das vacinas, levou o reforço de algumas, mas também diz que a cólera era a mais importante. "Apesar de já ter todos os cuidados necessários, como não utilizar água da rede pública" e nos contactos físicos com outras pessoas. "Se não tivesse vindo cá de certeza que ia a Maputo tomar a vacina para estar em segurança", garantiu à Lusa. O mesmo para Nilsia, que vai para casa "muito mais descansada, principalmente pelas crianças, que brincam por aí".
José Arsénio da Fonseca também queria ir para casa descansado. Mas não consegue. Retirado por fuzileiros portugueses de um lugar a 30 quilómetros de Buzi, um distrito que esteve isolado devido às cheias provocadas pelo ciclone Idai, apresentado como o português que mais preocupava as autoridades por não estar contactável, não esconde a contrariedade por estar ali.
Questionado pela Lusa porque não vai de barco até Buzi responde com enfado, como se já o tivesse feito várias vezes, que vive a 30 quilómetros de Buzi, que o trouxeram para a Beira por via aérea e que é assim que o deviam pôr em casa. "Estou a tentar que me levem de helicóptero, de Buzi para lá são 30 quilómetros". Na Beira é que não fica, nem que "peça boleia de bicicleta" até Bandua, a casa de onde os fuzileiros o foram tirar e onde tem a mulher à espera.
O antigo trabalhador da Açucareira do Buzi diz que perdeu os produtos agrícolas com as cheias, que tem muito trabalho. Mas diz também que o ciclone não lhe danificou a habitação e que a água só lhe chegou ao "segundo degrau da casa". Para a casa que quer ir agora. Porque cólera sempre houve ali e ele só tem tensão alta.