May alerta para absolutismo crescente na forma de fazer política

Theresa May fez hoje, na Chatham House, em Londres, o seu último grande discurso antes daquele que fará quando se despedir da chefia do governo britânico na próxima quarta-feira dia 24
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Theresa May está preocupada com a atual forma de fazer política. No Reino Unido. E no mundo. Os valores democráticos e liberais estão em perigo. As soluções de compromissos tornaram-se quase impossíveis. Os líderes dos partidos e dos países andam numa lógica de uns contra os outros, de vencedores e vencidos, numa soma de zeros, disse a primeira-ministra, que fez hoje na Chatham House, em Londres, o seu último grande discurso antes daquele que fará quando se despedir da câmara dos Comuns e do N.º 10 de Downing Street na próxima quarta-feira dia 24.

"Estou preocupada com o estado a que a política chegou e percebi que os valores que dávamos como garantidos podem não estar, no final de contas, assim tão garantidos. Políticas democráticas, liberdade de expressão e Estado de direito providenciaram o nexo do progresso no século passado. Há razões para preocupações sérias. Se não garantirmos a herança liberal que recebemos ela pode estar comprometida", afirmou a líder do Partido Conservadora, que será na próxima semana substituída por Boris Johnson ou por Jeremy Hunt, ex-ministro e atual ministro dos Negócios Estrangeiros, respetivamente. Os militantes conservadores estão a votar, por correio, até dia 22 e, no dia seguinte, será anunciado o vencedor.

Recorde-se que May, de 62 anos, se demitiu de líder dos Tories e da chefia do governo depois de ver o acordo do Brexit que negociou com a União Europeia ser chumbado três vezes pelos deputados na câmara dos Comuns. E de ter sido forçada a pedir por duas vezes à UE27 uma extensão do Artigo 50.º do Tratado de Lisboa, ou seja, o adiamento do Brexit. Inicialmente previsto para 29 de março, na sequência do resultado do referendo de 2016, agora está marcado para 31 de outubro.

"A alternativa é uma política de vencedores e vencidos e isso ameaça-nos a todos. Hoje parece difícil estabelecer um compromisso. O discurso político parece ir pelo caminho errado. Há quem acredite que, se se mantiver impassível na sua visão, durante o maior período de tempo possível, acabará por vencer. Há elementos de absolutismo nisto. As pessoas estão a perder a capacidade de discordar com honra. O debate degenerou em rancor e lutas tribais", sublinhou May, no seu discurso.

"O absolutismo infesta a política por todo o mundo. O absolutismo, aqui em casa e no estrangeiro, é o oposto de políticas de sucesso", referiu a chefe do governo, referindo como exemplo a nova ascensão da extrema-direita na Europa. A política internacional está a ser cada vez mais uma coisa de adversários. Uma soma de zeros. Não é isso que a política deve ser. É preciso encontrar pontos em comum para se chegar a compromissos sem ser preciso abdicar os seus princípios".

A primeira-ministra britânico, no cargo há três anos, com umas eleições antecipadas pelo meio, deu como exemplo de coisas que se conseguiram com compromisso o NHS, serviço nacional de saúde, proposto por um ministro conservador, introduzido por um governo trabalhista e depois, com Winston Churchill, foi desenvolvido para dar seguimento ao trabalho feito. Também referiu a Carta de São Francisco. Que deu origem ao que é hoje a ONU.

Citando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, quando este diz que o liberalismo é uma redundância, May garante que isso é uma falsidade. E que, para defender os valores liberais, é preciso reconstruir o apoio a esses valores. E pediu que a política seja capaz de criar, de agora em diante, uma convicção pragmática.

E, como não poderia deixar de ser, a líder conservadora teve umas palavras sobre o Brexit. "Levar o Brexit a um bom porto significa voltar a unir o nosso país. Há quem prefira um Brexit sem acordo. Brexit com acordo. Que foi o que eu negociei. Mas quando chegou a hora de o Parlamento decidir, os partidos entrincheiraram-se nas suas ideologias, nas posições binárias que tinham assumido antes do referendo [a 23 de junho de 2016], recusando forjar um compromisso". Uma vez mais, a ainda líder conservadora sublinhou que é preciso compromisso para fazer cumprir o Brexit,

Citando Eisenhower, May lembrou que nem tudo é branco ou preto, é possível haver compromissos.

Na sessão de perguntas e respostas, em que participaram jornalistas e outros membros da assistência, May foi questionada sobre se a corrida para a liderança do Partido Conservador é um bom exemplo do extremismo de que falou. Respondeu que não ia fazer comentários sobre a eleição em curso no seu partido para escolher o seu sucessor entre Boris Johnson e Jeremy Hunt, respetivamente, o ex-ministro e o atual ministro dos Negócios Estrangeiros britânicos. "Cabe ao meu sucessor decidir como vamos sair da UE", disse May, sublinhando que a melhor opção é um Brexit com acordo.

A quem se referia quando falou em absolutismos, pergunta um jornalista, desafiando-a a excluir que estivesse a pensar em Boris Johnson - favorito à sua sucessão - ou no presidente dos EUA Donald Trump. "São observações gerais que eu tenho vindo a fazer, observo em todo o mundo, por isso considerei importante referi-las hoje".

Horas antes, na câmara dos Comuns, durante a sessão de perguntas à primeira-ministra, a penúltima antes de sair de Downing Street, Theresa May disse que Jeremy Corbyn precisa pedir desculpas por ter falhado em punir o antissemitismo no Labour. "É este o seu legado senhor Corbyn? Falhou a sua liderança. Peça desculpa já", afirmou a primeira-ministra, lembrando que 60 membros do Labour assinaram um artigo num jornal a dizer que Corbyn falhou o teste da liderança por causa da sua resistência em tomar medidas firmes contra posições antissemitas dentro do Labour.

"O Labour dá as boas vindas a toda a gente, qualquer que seja a sua raça, credo, idade, género ou orientação sexual. (*exceto, ao que parece, judeus). É este o seu legado, Sr. Corbyn. Falhou em defender os valores anti-racistas do nosso partido. Por isso falhou o teste da liderança", escrevem numa mensagem dirigida a Corbyn, 60 lordes trabalhistas. "O antissemitismo não tem lugar nas nossas sociedades, em nenhum país, em nenhum partido", disse Corbyn, ativista pró-palestiniano, contra-atacando e não se desculpando pela forma suave como tem lidado com acusações de antissemitismo dentro do partido. O líder trabalhista desafiou a primeira-ministra conservadora a explicar porque 60% dos Tories são anti-Islão.

Este tema - e não o Brexit como é habitual - foi o que originou trocas mais acessas entre a primeira-ministra conservadora e o líder da oposição trabalhista durante a sessão semanal de perguntas à primeira-ministra em Westminster. De resto, houve um tema que suscitou bastante concordância, entre todas as bancadas, que foi o facto de a Inglaterra se ter sagrado este fim de semana passado Campeã Mundial de Críquete.

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