Kamala Harris vence Joe Biden e ofusca Bernie Sanders em debate caótico
À partida, Joe Biden e Bernie Sanders eram o grande chamariz do segundo debate entre democratas, o primeiro por liderar as sondagens e o segundo pela grande base de apoio que conquistou quando tentou ser nomeado em 2016. Ambos são os mais velhos (76 e 77 anos, respetivamente) e estão na política há décadas. Foi essa a farpa que Eric Swalwell, representante do 15º distrito da Califórnia, atirou a ambos. Numa das trocas de argumentos em que tentou fazer-se ouvir, o jovem candidato de 38 anos pediu a Joe Biden que "passe o testemunho" à geração mais nova. Mas não foi ele que demonstrou ter capacidade para tirar das mãos do ex-vice presidente da administração Obama a liderança nas sondagens. Quando ambos trocavam galhardetes numa confusão sonora que deixou os moderadores da NBC com os nervos em franja, foi a senadora da Califórnia Kamala Harris que emergiu. "Senhores, os americanos não querem assistir a uma luta de comida", disse. Querem saber como é que nós vamos pôr comida na mesa deles."
Com um tom assertivo, políticas concretas e postura firme, a ex-procuradora geral da Califórnia foi considerada quase unanimemente a vencedora do segundo debate entre democratas. Na CNN, o comentador Van Jones afirmou que o debate "fez nascer uma estrela." Reflexo do desempenho de Kamala Harris, que se destacou de todos os outros, a pesquisa pelo seu nome no Google aumentou 500% durante o debate.
Harris não só ofuscou Bernie Sanders como foi responsável pelo desempenho sofrível de Joe Biden. Apesar do candidato ter dominado em termos de tempo de antena - falou um total de 13m30s -, na maior parte do tempo encontrou-se à defesa, tentando puxar dos galões da vice-presidência com Obama e outras vitórias legislativas do passado. No entanto, foi o extenso histórico de Biden na política que deu munição aos opositores para o atacarem.
O momento mais falado da noite acabou por ser não uma das discussões sobre medidas concretas mas o confronto entre Harris e Biden por causa das questões raciais nos Estados Unidos. Harris perguntou a Biden se ele se arrependia de ter estado contra uma medida conhecida como "busing", usada nos anos setenta para acelerar a desagregação racial das escolas. "Eu era essa menina [que ia no autocarro], disse Harris. Biden respondeu que se opôs a que a medida fosse mandatada a nível federal, não a medida em si própria. Mas o discurso apaixonado de Harris e a postura defensiva de Biden deixaram marcas. Foi a noite da senadora californiana, que pouco ou nada se viu questionada por algumas medidas controversas que tomou no passado, nomeadamente em relação à acusação de pessoas devido à posse e consumo de marijuana quando a substância era ilegal.
Bernie Sanders, talvez a presença mais antecipada no debate, não se prejudicou durante as duas horas de questões mas não emergiu como vencedor. O senador de Vermont repetiu as mesmas linhas da sua campanha de há três anos, declarando que tem "uma nova visão para a América" que implica fazer frente a Wall Street e às grandes farmacêuticas, abolir os seguros de saúde privados em prol de um sistema público (Medicare Para Todos), tornar o ensino superior gratuito e pagar tudo isto com impostos sobre os mais ricos. Sanders admitiu que os impostos também subiriam para a classe média, mas tal subida seria compensada pela descida de custos em áreas vitais, em especial na saúde. Foi um desempenho com pouco brilho. A CNN considerou mesmo que ele foi um dos perdedores da noite e aprendeu uma lição: debater contra a candidata do regime sendo o insurgente é muito diferente de tentar levar à frente 9 outros candidatos num cenário sobrelotado.
Embora tivesse sido menos específico que outros candidatos nalgumas matérias, o teor do debate demonstrou como as ideias de Sanders permearam o partido nos últimos anos. Ainda assim, só Harris se mostrou a favor de abolir seguros privados. Todos os outros falaram de criar uma opção pública mas mantendo o privado e o senador do Colorado Michael Bennet opôs-se com firmeza à proposta de Sanders, lembrando que até o estado de Vermont rejeitou a ideia. Joe Biden também criticou quem quer desmantelar o Obamacare (Affordable Care Act) em vez de o fazer evoluir.
Num debate onde vários candidatos falaram por cima de outros, tentando captar a ribalta, houve momentos que serão certamente aproveitados pelo partido Republicano para caracterizar os democratas como loucos. Um deles foi o consenso, através de mãos no ar, de que os imigrantes ilegais devem ter acesso ao sistema público de saúde que querem implementar. Foi a única altura em que o presidente Donald Trump se pronunciou no Twitter: "Todos os Democratas levantaram as mãos para dar a milhões de ilegais cuidados ilimitados de saúde. E que tal tratar dos Cidadãos Americanos primeiro!? É o fim dessa corrida!".
Nesta mesma linha, outro momento importante foi a afirmação de que imigrantes ilegais que não tenham cometido crimes não devem ser deportados, num momento em que Biden se viu atacado porque Barack Obama foi um dos presidentes que mais deportou pessoas.
Harris, Biden e Sanders concentraram atenções, mas quem se destacou também foi o mayor de South Bend, indiana, Pete Buttigieg, que tem apenas 37 anos e aguentou bem a pressão. "O Partido Republicano gosta de se vestir com a linguagem da religião", afirmou o candidato, que segue a fé episcopal. "Devemos nomear a hipocrisia quando a vemos. Para um partido que se associa com o Cristianismo, dizer que Deus sorriria perante a divisão de famílias nas mãos de agentes federais, que Deus aprovaria colocar crianças em gaiolas, perderam todo o direito de alguma vez voltarem a usar a linguagem da religião."
A questão da imigração foi quase consensual entre os candidatos, que defenderam a restituição do programa DACA e a criação de um programa de legalização dos imigrantes sem documentos. Kirsten Gillibrand, senadora de Nova Iorque, lembrou que 7 crianças morreram na custódia dos agentes federais e disse que procuraria uma abordagem baseada nas comunidades para receber aqueles que pedem asilo. A senadora, que interrompeu os outros com frequência, também defendeu a sua capacidade de negociar consensos e a intenção de lutar forte pelos direitos reprodutivos das mulheres.
Entre os outros candidatos, Eric Swalwell insistiu na ideia de passagem de testemunho, que também atirou para cima de Bernie Sanders, mas a sua candidatura baseia-se na reforma das leis das armas para obrigar a um sistema muito mais rígido de verificação de cadastro e programa de compra de armas de assalto dos cidadãos.
O ex-governador do Colorado John Hickenlooper fez um esforço para se apresentar, por ser um nome desconhecido da maioria dos eleitores, e apareceu como uma opção centrista e cautelosa. Disse que é preciso esclarecer que os Democratas não são socialistas, um termo que nos Estados Unidos tem uma carga negativa grande e é associado ao comunismo e à extrema-esquerda.
Os únicos dois candidatos de fora da política no debate foram o empresário de tecnologia Andrew Yang e a autora de 13 livros Marianne Williamson. Yang concentrou-se na sua proposta mais mediática: dar mil dólares por mês a cada adulto, pagando esse custo com a criação de um imposto IVA. O racional é, segundo descreveu, compensar a revolução da automação que vai eliminar milhões de empregos nos próximos anos.
Williamson teve alguns momentos sóbrios com soundbites poderosos, como quando afirmou que os Estados Unidos "não têm um sistema de saúde, mas um sistema de doença", em que quando uma pessoa adoece a questão é quem vai tentar evitar pagar pelo tratamento. Mas a reação da audiência à autora ficou marcada pela estranheza de algumas das suas afirmações, quando falou de ligar à presidente da Nova Zelândia no primeiro dia de trabalho e disse a Donald Trump que iria "arrear o amor" para o combater.
O próximo debate está marcado para 30 e 31 de julho em Detroit, desta vez moderado pela CNN.