Iván Márquez: o ex-guerrilheiro das FARC que negociou a paz e agora volta às armas
Foi ele que negociou a paz e agora é ele que anuncia o retomar das armas. O antigo dirigente da guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que ao longo de vários anos encabeçou o diálogo com o governo do ex-presidente Juan Manuel Santos, em Havana, denunciou a "traição" do Estado aos acordos e o regresso à luta. As FARC, agora transformadas em partido político, demarcam-se dessa ideia.
"Anunciamos ao mundo que começou a segunda Marquetalia [lugar do nascimento das FARC] sob a proteção do direito universal que ajuda todos os povos do mundo a se armarem contra a opressão", disse Iván Márquez num vídeo divulgado no final de agosto. O acordo, assinado em 2016, pôs fim a 56 anos de luta armada que deixou 260 mil mortos e milhões de deslocados.
Mas vários ex-guerrilheiros, que entregaram as armas sob a promessa de uma reintegração na sociedade, benefícios económicos e garantias de segurança consideram que o Estado colombiano falhou. Nomeadamente depois da eleição do conservador Iván Duque, protegido do ex-presidente Álvaro Uribe, que é um dos maiores críticos do acordo de paz. No Congresso, o partido de Duque tem procurado alterar o acordo, nomeadamente no que diz respeito a sentenças mais pesadas para os autores de crimes de guerra.
Após o acordo de paz, cerca de sete mil guerrilheiros entregaram as armas e reincorporaram-se na vida civil, junto com cerca de 17 mil seguidores, não combatentes. Cerca de 13 mil estão no processo de reincorporação, sendo que um quarto vivem em 24 campos de reintegração. Não se sabe do paradeiro de cerca de 8%, de acordo com o think tank Ideias para a Paz, sendo que perto de 2300 são considerados "dissidentes".
"O Estado não cumpriu as suas obrigações mais importantes, que são garantir a vida dos seus cidadãos e, principalmente, evitar assassinatos por razões políticas", acrescentou. "Em dois anos, mais de 500 líder comunitários foram mortos e 150 combatentes da guerrilha estão mortos no meio da indiferença e indolência do Estado", referiu, anunciando o renascimento do grupo que promete responder a ofensivas militares, mas não fará sequestros para se financiar.
Luciano Marín, o verdadeiro nome de Iván Márquez, nasceu há 64 anos na região de Caquetá e era considerado o número dois da guerrilha, atrás do líder Rodrigo Londoño (mais conhecido como Timochenko). Membro do secretariado da guerrilha e comandante do Bloco das Caraíbas, militou desde 1977 na Juventude Comunista Colombiana, tendo feito parte da rede de apoio às FARC, às quais se acabaria por juntar em 1985, já depois de estudar direito na União Soviética.
Durante a primeira tentativa de paz na Colômbia, em meados dos anos 1980, na qual terá também participado, foi um dos congressistas eleitos pela União Patriótica em 1986, mas regressaria à clandestinidade após o fracasso dos acordos. Assumiu então o comando do bloco da região sudoeste. passando depois para o Bloco das Caraíbas e tornando-se, em 1990, após a morte do então líder das FARC, Jacobo Arenas, num dos porta-vozes da guerrilha.
Nos anos 1990 participou numa nova tentativa de diálogo de paz, que também falhou, e já no novo milénio, quando durante a presidência de Álvaro Uribe se apertou o cerco às FARC e morreu Raúl Reyes, tornou-se no principal porta-voz a nível internacional da organização.
Quando Juan Manuel Santos chegou ao poder na Colômbia quis voltar a tentar negociar com as FARC, dando início em 2012 a um conjunto de negociações que culminaram em 2016, na assinatura do acordo de paz em Havana. E valeram ao presidente o Nobel da Paz, mesmo depois de inicialmente os colombianos terem rejeitado o texto num referendo.
As FARC tornaram-se num partido - a Força Alternativa Revolucionária do Comum -- e em setembro de 2017 Iván Márquez foi eleito como membro da direção nacional (foi o mais votado entre os delegados do congresso).
Cabeça de lista do partido na corrida ao Senado de março de 2018, conseguiu um lugar graças ao acordo de paz, que garantia dez lugares (cinco no Congresso e cinco no Senado) para as FARC nas primeiras eleições -- mesmo se não tivessem os votos necessários para tal. Não chegaria a assumir o cargo, em protesto pela detenção de outro ex-guerrilheiro, Jesús Santrich, acusado de narcotráfico.
Em maio, já há mais de um ano em parte incerta, dizia ter sido "um grave erro" a entrega das armas "a um Estado mentiroso".
No seu currículo tem, segundo o jornal El Tiempo, 28 condenações, 198 ordens de captura e enfrenta agora um novo processo por posse ilegal de armas, conspiração para cometer crimes e uso de uniforme e símbolos ilegais, por causa do vídeo do anúncio do regresso às armas. As autoridades oferecem três milhões de pesos (cerca de 800 mil euros) por informações que levem à sua captura.
No anúncio de regresso às armas, Márquez não estava sozinho. Ao seu lado estavam outros dois antigos dirigentes da guerrilha, incluindo Jesús Santrich (o nome verdadeiro é Seuxis Paucias Hernándes Solarte), que também esteve nas negociações de paz.
Detido em abril de 2018 por suspeita de narcotráfico, foi alvo de um pedido de extradição por parte dos EUA, alegando que conspirou para enviar cocaína para esse país já depois dos acordos de paz -- estando, por isso, fora do âmbito do tribunal especial criado para julgar os crimes durante o conflito armado.
Santrich, de 52 anos e 25 deles nas FARC, foi um dos congressistas eleitos pelos acordos de paz. Em maio de 2019, a justiça colombiana rejeitou o pedido de extradição dos EUA e libertou-o. Durante três segundos. Foi novamente preso à porta da prisão, depois de a procuradoria apresentar novas provas dos crimes. Seria novamente libertado dois dias depois, já que como congressista eleito tinha imunidade.
Em junho desapareceu, estando desde então em paradeiro incerto, tendo a justiça colombiana emitido nova ordem de captura (tal como a Interpol).
As contas de Twitter de Santrich, assim como de Iván Márquez, foram entretanto suspensas.
Outro ex-guerrilheiro que surge no vídeo é Hernán Darío Velásquez, mais conhecido como El Paisa. Ex-membro do grupo de Pablo Escobar, o líder do cartel de Medellín, juntou-se às FARC após uma passagem pela prisão. Foi o comandante da coluna Teófilo Forero, uma das mais violentas das FARC, responsável por inúmeros assassinatos, atentados, sequestros e o planeamento de atentados contra o ex-presidente Uribe.
Desapareceu ao mesmo tempo que Iván Márquez, tendo o tribunal especial criado pelos acordos de paz emitido ordens para a sua captura e uma recompensa de 860 mil dólares para quem ajude a encontrá-lo.
O tribunal especial revogou também a suspensão das ordens de captura em nome de Márquez e de outros três ex-líderes guerrilheiros que anunciaram o retomar das armas: Henry Castellanos Garzón, conhecido como "Romaña"; José Vicente Lesmes, ou "Walter Mendoza", e José Manuel Sierra Sabogal, aliás "Zarco Aldinever".
Numa primeira reação ao anúncio do retomar de armas por parte de ex-membros da guerrilha das FARC, o presidente colombiano, Iván Duque, disse que não aceitará "ameaças de qualquer natureza", apontando o dedo ao líder do país vizinho, a Venezuela. E deixou claro: "Não estamos diante do nascimento de uma nova guerrilha, mas diante das ameaças criminosas de um grupo de narcoterroristas que contam com o abrigo e o apoio da ditadura de Nicolás Maduro". Caracas rejeitou as acusações.
Em agosto, o nível de desaprovação ao presidente aumentou para os 64% na Colômbia, segundo uma sondagem Gallup, mais dois pontos percentuais do que em junho.
O ex-presidente Juan Manuel Santos também reagiu ao anúncio. "Por mais disfarce político que queriam usar, ninguém os vai reconhecer como interlocutores políticos porque as FARC deixaram de existir; os comandantes que representam 90% dos guerrilheiros que ficaram no processo estão a dizer que não têm nada a ver com eles", disse à EFE.
No terreno, as forças militares já estão a atuar contra o grupo. Logo na sexta-feira, uma operação militar na região de San Vicente del Caguán, um antigo bastião da guerrilha, resultou na morte de nove membros do grupo. Entre os mortos estará Gildarde Cucho, que o presidente colombiano disse ser o cabecilha de um dos Grupos Armados Organizados Residuais, como são conhecidos os grupos dissidentes das FARC.
O Alto Comissariado para a Paz, liderado por Miguel Ceballos, garante que "mais de 90% dos ex-combatentes das FARC estão comprometidos com o processo e essa vontade de paz deve ser respeitada", citado pela BBC. Segundo os dados da Fundação Ideias para a Paz, dos 13 049 antigos guerrilheiros registados no Alto Comissariado, 84% recebem um subsídio mensal equivalente a 90% do salário mínimo.
Depois da assinatura dos acordos de paz, a guerrilha deu lugar a um partido político -- a Força Alternativa Revolucionária do Comum --, com representantes no Congresso e no Senado da Colômbia. Os líderes do partido, ex-líderes da guerrilha, criticaram a decisão de Márquez.
"Os Acordos de Paz representam o culminar do velho desejo do povo colombiano de pôr fim ao conflito armado e semear a esperança de consolidar definitivamente a paz com justiça social no nosso país", disse o antigo líder da guerrilha e atual líder do partido, Rodrigo Londoño, que era conhecido como "Timochenko". "Proclamar a luta armada na Colômbia de hoje constitui um "erro delirante", acrescentou.
Londoño indicou ainda numa conferência de imprensa que os ex-guerrilheiros resolveram deixar as armas "com a convição profunda de que a guerra tinha deixado de ser o caminho", deixando claro que seguirá nesse caminho.
Numa entrevista com a BBC, Londoño disse mais tarde que foi apanhado de surpresa pela decisão, já que todos cortaram relações há mais de um ano. "Eles ajudaram a construir este acordo. Tinha esperança de que não fossem por este caminho. Havia dificuldades que eles argumentavam, mas nuna acreditei que essas dificuldades fossem servir de argumento para a decisão errada que tomaram", afirmou.
"Não considero que tenham motivação política. Não têm. Não sei se será narcotráfico ou quê, mas em tudo vejo uma motivação pessoal, individual". Admitindo que o grupo de Márquez é "muito pequeno", avisa para o risco de outros ex-guerrilheiros voltarem às armas e exigiu um "compromisso muito mais claro" do presidente colombiano com o processo de paz.
O partido FARC, que só entrou no Parlamento e no Senado graças ao acordado em Havana, espera um melhor resultado nas eleições regionais de outubro, tendo apresentando candidatos para oito departamentos, 26 presidências da câmara e 60 conselhos municipais.
Segundo um estudo Gallup, publicado em agosto, 63% dos colombianos consideram que a implementação dos acordos de paz vai por um mau caminho, sendo que 67% dos inquiridos acreditam que as FARC não vão cumprir com os acordos e 60% acreditam que o governo não cumprirá.
O ex-presidente Álvado Uribe, que durante os seus mandados manteve mão de ferro em relação às FARC infligindo duros golpes à guerrilha, continua a ser um dos principais críticos do acordo. "Aqui não houve paz, mas o indulto para alguns responsáveis de crimes atrozes com um alto custo institucional", defende Uribe, que pede a revisão do acordo, nomeadamente na questão da justiça.
Os analistas duvidam das intenções de Márquez e da sua capacidade em unir os diferentes grupos dissidentes, assim como de cativar a atenção dos ex-guerrilheiros que já se desmobilizaram -- estando esta parte contudo dependente de o governo assegurar o compromisso para com eles.