"Na Irlanda não queremos o Reino Unido prejudicado por uma saída caótica da UE"
Um adiamento do Brexit é boa notícia para a Irlanda ou o melhor seria resolver-se tudo já e rapidamente?
Nos últimos três anos, depois da decisão do povo do Reino Unido de se retirar da UE, as negociações lideradas por Michael Barnier têm sido totalmente apoiadas por todos os restantes 27 membros, incluindo, claro, a Irlanda. Apreciamos a solidariedade geral mostrada com as preocupações que são específicas da Irlanda dada a proximidade com o Reino Unido e os históricos laços económicos, sociais e culturais. Estamos agora numa situação complexa em que foram rejeitados várias versões do acordo levadas pela primeira-ministra Theresa May de Bruxelas para a Câmara dos Comuns, após consultas com o senhor Barnier e Jean-Claude Juncker. Apesar disso houve uma votação em Londres para não haver uma saída desordenada e assim na reunião desta quinta-feira os líderes europeus terão de decidir que proposta aceitar da primeira-ministra. Uma dessas dessas possibilidades é uma extensão curta, muito curta, um mês, ou outra um pouco mais longa, da saída. Do ponto de vista da Irlanda, e somos parte dos tais 27, teremos que ver o que planeiam fazer, mas certamente não queremos o Reino Unido prejudicado por uma saída caótica, preferimos uma saída organizada, com um período de transição, com negociações para nos mantermos o tão próximo possível como temos estado até agora. Mas na realidade, uma extensão só pode ir até junho, caso contrário trará consideráveis perturbações para toda a UE. Com um novo Parlamento Europeu eleito em maio, e a ter de tomar posse em junho já com a sua nova estrutura, o problema da presença do Reino Unido levanta-se. É ilegal a um país ser membro e não ter representantes em Estrasburgo e na comissão a ser eleita. Toda a maquinaria da UE terá de ser reajustada em função de passarem a ser 27 membros e não 28. E isto só depois do Brexit.
Um longo período de transição desagrada à Irlanda?
Não há necessidade. Há um acordo previsto desde novembro. Contém uma série de compromissos entre os dois lados para vigorarem durante dois anos. É isto que foi acordado entre o governo do Reino Unido e os 27 e nós estamos satisfeitos. É um acordo aceitável para a Irlanda. Assim, neste momento não vemos nada no horizonte que não seja aquilo que já foi acordado. Estender a retirada para depois de junho não é nem prático nem pragmático.
Desde o primeiro momento depois da vitória do Brexit no referendo de 2016 foi evidente para os irlandeses que o seu país estaria no centro de todas as discussões?
Posso dar o exemplo do meu ministério. Desde o minuto em que o então primeiro-ministro britânico David Cameron marcou a votação começámos a preparar-nos para essa hipotética saída do Reino Unido da UE, tentando antecipar consequências. E de facto todo o governo irlandês pôs em prática planos de contingência, de início mais focados numa transição ordeira, depois também pensados para lidar com uma saída desordeira. E começou a ser preparada legislação. Logo ficou evidente para nós que a Irlanda seria o país a sofrer mais consequências e foi muito importante sentir que o resto dos 27 percebeu isso e tem sido solidário. Estive há pouco nos Balcãs e pequenos países membros como a Eslovénia e a Croácia, e outros ainda só candidatos, disseram-me como apreciaram todo este fenómeno de apoio à Irlanda e a importância de fazer parte de uma família tão alargada de nações, onde todos têm um direito igual de se pronunciar e decidir quando sentados à mesa.
A salvaguarda do Acordo de Sexta-feira Santa, de 1998, que pacificou a ilha, foi também desde logo uma prioridade para o Governo irlandês, assim que o Brexit se tornou provável?
Deve dizer-se que é um bom acordo e que tanto o governo irlandês como o do Reino Unido são garantes dele e das regras que dele emanam . A mais óbvia é a livre circulação de pessoas e bens, sem fronteiras rígidas na ilha, e tem de ser protegida. Quando ouvimos falar do Back Stop irlandês há sérias razões para ele existir. Como disse o senhor Juncker é uma espécie de seguro e como todos os seguros nunca se sabe o que acontecerá se ele não existir, mas o melhor mesmo é continuar a existir. A aritmética na Câmara dos Comuns faz com que a senhora May dependa de dez deputados de um partido muito focado no assunto e isso às vezes faz com que pareça ser o ponto central de todas as negociações. Mas na realidade, se uma fronteira rígida ressurgisse por causa do Brexit, outras leis estariam a ser violadas. As pessoas às vezes ficam confusas e acham que o Back Stop é uma exigência, mas não é, é sobretudo um seguro para que não se viole o tal acordo e regressem as barreiras entre as duas partes da ilha.
O problema do Back Stop não é, pois, apenas uma questão de facilidade de viajar ou de fazer comércio. Trata-se também, para o povo irlandês, de evitar o regresso aos velhos tempos de divisão, confronto e até muita violência, em espeial no Norte, certo?
Existiu uma fronteira em termos de controlo de segurança. Mesmo depois de Maastricht, quando a circulação de bens deixou de ser um problema, continuou a haver controlo sobre quem viajava entre as duas jurisdições. O Acordo de Sexta-feira Santa lida com isso e acabou com esses controlos e a única diferença que se nota agora quando se viaja da Irlanda do Sul para a Irlanda do Norte é que os limites de velocidade num lado são em quilómetros por hora e no outro em milhas. É a única diferença. Não queremos voltar ao passado e estou esperançado que isso nunca irá acontecer. Mas um dos problemas é que há na Irlanda do Norte aqueles que não querem nenhuma diferença, depois do Brexit, com o resto do Reino Unido. A única solução para nós, já disse, está no acordo negociado. E nós não planeamos nenhum controlo fronteiriço terrestre na ilha, apenas nos portos e aeroportos, a nossa fronteira externa. De forma alguma dentro da nossa ilha.
Mesmo que o acordo seja finalmente assumido, o Brexit terá sempre um impacto negativo na economia irlandesa?
Há grandes desafios. Vou-lhe dar um exemplo: grande parte das exportações agro-pecuárias são com o Reino Unido. O Reino Unido é também o nosso principal parceiro comercial em termos gerais. E assim, tudo o que contrarie os tratados comerciais existentes, que torne mais demorado todo o comércio, é mau. Quando há fronteiras, a papelada parece sempre ter prioridade sobre os produtos. Outro exemplo, 70% das nossas exportações de madeira ou derivados é para o Reino Unido. Tudo o que complique o processo torna a nossa indústria menos competitiva, e são 320 milhões de euros em exportações. Carne, leite, cogumelos. Tudo o que afete e atrase as exportações de produtos frescos é automaticamente negativo para a Irlanda. E claro para o consumidores no Reino Unido. Por isso é importante um período de transição. Até porque boa parte do nosso comércio com o resto da UE transita via Reino Unido. Temos muito que fazer, mas só se conseguirá iniciar bem o processo quando tudo for esclarecido.
Há uns anos Portugal e a Irlanda, por razões diferentes, estavam em crise e eram vistos, juntamente com a Grécia, como os problemas da Europa. Como vê a recuperação dos dois países?
Éramos parte do grupo dos PIIGS [risos]. Com Itália e Espanha também. E conseguimos sair dessa situação. O nosso grande problema foi o sistema bancário. Conseguimos equilibrar o défice, mas os funcionários públicos sofreram muito e houve muita dor em geral na sociedade. Muita gente jovem emigrou para os mais distantes países, do Canadá à Austrália e à Nova Zelândia. Ironicamente os dois setores que cresceram mesmo no tempo de crise foi a agricultura e o turismo, as nossas duas maiores indústrias. Foi um caminho difícil. Fui eleito para o parlamento pela primeira vez em 2007 e tive só um ano de lua de mel, depois veio a crise[risos] . Tivemos um programa de assistência, muitos cortes, até conseguirmos refazer as condições para voltarmos a ter uma economia competitiva. Em Portugal, creio, que houve muitas semelhanças. E como pequenos países a solidariedade da UE foi muito importante. E devo dizer que nesse período o Reino Unido mostrou uma solidariedade que nunca será esquecida, um pouco diferente da da Alemanha, que sempre se pode dizer que queria era voltar a vender-nos carros e frigoríficos. Tivemos até a visita da rainha Isabel II em 2011, a primeira de um chefe de Estado britânico à República da Irlanda. E sim queremos ter excelentes relações com o Reino Unido depois do Brexit, mas a nossa economia provavelmente vai ter de ser reconstruída com base em novas fundações.