Igreja Episcopal pede ao país que se levante contra Trump. E compara-o a McCarthy
"Temos aceitado um nível de insulto e agressão no discurso político que viola a identidade sagrada de cada pessoa como filha de Deus. Temos vindo a aceitar como normal uma torrente constante de acusações e de discurso que se dirige aos elementos racistas da sociedade. (...) Não se enganem, as palavras importam. E as palavras do senhor Trump são perigosas. (...) Quando palavras tão violentas e desumanizadoras vêm do presidente dos EUA, são um toque de clarim e uma cobertura para os supremacistas brancos que consideram as pessoas de cor uma "infestação" sub-humana da América. São uma chamada à ação dessas pessoas para que mantenham a América grande combatendo essa infestação. Palavras violentas levam a ações violentas. (...) Como líderes espirituais da Catedral de Washington -- o lugar sagrado no qual a América se congrega nos momentos de grande significado nacional -- somos obrigados a perguntar: após dois anos de ações e palavras do presidente Trump, quando é que a América vai dizer chega?""
Num comunicado datado de 30 de julho, terça-feira, e intitulado "Não temos uma réstia de decência? Uma resposta ao Presidente Trump", os três clérigos responsáveis pela Catedral de Washington, onde tiveram lugar os velórios de quatro presidentes, o último dos quais o de George Bush, assim como o do senador republicano John McCain, e onde Trump foi várias vezes à missa, incluindo na noite do último Natal (no Twitter, a conta da catedral partilhou o texto sob a imagem de Trump e da mulher ao lado do vice-presidente Pence durante uma cerimónia no templo), pedem ao país que reaja, certificando que ficar em silêncio é ser cúmplice.
"Quando é que o silêncio se transforma em cumplicidade? O que terá de acontecer para que digamos todos, numa só voz, que chega? A pergunta é menos sobre o sentido de decência do presidente que sobre o nosso. Como líderes espirituais que creem no caráter sagrado de todos os seres humanos, consideramos que o tempo para estar calado acabou. Devemos ter a coragem de falar contra o preconceito, o ódio, a intolerância e a xenofobia que nos são gritados, especialmente quando vêm dos mais altos cargos da nação. Devemos dizer que tal não pode ser tolerado. Manter o silêncio face a tal retórica é para nós um tácito sancionar da violência daquelas palavras. Somos compelidos a usar todas as oportunidades para nos opormos à indecência e desumanização que o racismo significa, chegue em palavras ou em ações."
O comunicado da Catedral de Washington, pertencente à Igreja Episcopal Americana, uma igreja anglicana que representa cerca de 0,9% dos americanos e que se notabiliza pelas suas posições "progressistas", tendo aprovado o casamento das pessoas do mesmo sexo (o que lhe valeu a suspensão, em 2016, da Comunhão Anglicana) e criticado o presidente noutras ocasiões -- por exemplo no que respeita à interdição de pessoas transgénero nas Forças Armadas, a separação de famílias de migrantes na fronteira com o México e por suavizar uma norma da lei fiscal que proíbe as igrejas de apoiar candidatos a cargos políticos -- surge em resposta aos ataques de Trump a um parlamentar democrata de Baltimore, negro e representante de uma circunscrição maioritariamente negra, Elijah Cummings, dizendo que a zona que o elegeu é "uma nojeira infestada de ratazanas e outros roedores", depois de o presidente ter já a 14 de julho "aconselhado" quatro congressistas "de cor", três das quais nascidas nos EUA e uma naturalizada americana, a "voltarem aos lugares desgraçados e infestados de crime de onde vieram".
O site Politico publicou na terça-feira um apanhado das vezes em que Trump usou a expressão "infestação" e "infestado" e a metáfora (?) infestação de roedores, e ao contrário do que os apoiantes do presidente têm defendido não é sempre de animais daninhos que ele fala quando usa a expressão. Já como presidente a usara em janeiro de 2017 para atacar John Lewis, um congressista negro da Georgia, cuja circunscrição de Atlanta apelidou de "infestada de crime"; aconselhando-o a focar-se nas "inner-cities" (referindo-se a zonas urbanas pobres) "em chamas e infestadas de crime" dos EUA; disse que os democratas querem que "os imigrantes ilegais, por piores que sejam, entrem e infestem o país"; referiu-se às "cidades santuário" (um conceito difícil de precisar legalmente mas que passa por não cooperar com o governo na aplicação da lei da imigração, tentando evitar a deportação de imigrantes ilegais) como tendo a ver com uma ideia "ridícula, infestada de crime" e afirmou existir uma "infestação de gangs MS-13 [de origem salvadorenha] em algumas partes dos EUA".
"Infestação", frisa o colunista Charles M. Blow no New York Times, justifica extermínio. E Jamil Smith, jornalista da Rolling Stone, corroborou, num tuíte esta segunda-feira: "Quando Trump fala da América "infestada de imigrantes" fala a linguagem do genocídio, não de governo. Ao comparar pessoas a animais daninhos, mesmo se as considera criminosas, dá-se licença para ser exterminador. Conhecemos essa história."
A história a que Smith se refere é por exemplo a da perseguição nazi aos judeus, sistematicamente tratados como parasitas e ratos pela propaganda nazi.
No seu comunicado, porém, os três clérigos da Catedral de Washington -- a bispa Mariann Edgar Budde, o reitor Randolph Marshall Hollerith e a teóloga Kelly Brown Douglas -- não recorrem a analogias com discursos racistas do passado mas à caça às bruxas McCarthista e à atitude demagoga, destrutiva, irresponsável e odienta de Joseph McCarthy, acusando Trump, como aponta a revista Time , "de deliberadamente acicatar as divisões raciais para ganhos políticos, da mesma forma que McCarthy usou o medo da infiltração comunista."
Diz a liderança da catedral: "Como americanos, tivemos momentos assim antes, e como povo agimos. Os acontecimentos da semana passada lembram um período igualmente negro da nossa história", dizem os religiosos, citando o procurador do Exército americano Joseph Welch no seu confronto em direto na TV com Joseph McCarthy, o famoso impulsionador da "caça às bruxas", um período da história dos EUA em que a suspeita de simpatia pelo comunismo levou inúmeras pessoas a serem cunhadas de inimigas do país, lançando-as na miséria e no opróbrio: "Até este momento, senador, acho que nunca tinha realmente medido a sua crueldade e irresponsabilidade... Foi longe de mais. Não tem uma réstia de decência?"
Essa pergunta, diz a direção da Catedral de Washington, "acabou com o ascendente de McCarthy sobre a nação. Até então, com o pretexto de livrar o país da infiltração comunista, tinha tido rédea livre para fazer o que entendesse. Com o seu discurso desenfreado, incitou o medo numa nação ansiosa com mentiras, destruiu as carreiras de inúmeros americanos, e reduziu a silêncio submisso quem quer que fosse que se atrevesse a criticá-lo." E conclui: "Em retrospetiva, é claro que a pergunta de Welch foi menos dirigida a McCarthy e mais à nação como um todo. Os americanos não achariam que já chegava? Onde estava a nossa decência?"
Em conversa com o site Washingtonian, a bispa Budde cita a frase geralmente atribuída a Burke mas que será de John Stuart Mill: "É quando pessoas de boa vontade nada fazem que o mal, e não me refiro a pessoas más, mas a comportamento destrutivo, pode triunfar por algum tempo."
Budde explica que apesar de se acordar todos os dias nos EUA com notícias sobre os tuítes de Trump, e que a repetição de comentários ofensivos e rudes acabou por insensibilizar as pessoas, os ataques a Baltimore acenderam uma luz vermelha: "Sentimos que se tinha passado uma fronteira. Há um intuito racial nítido, e está a crescer. A exaustão leva à inatividade, e a inatividade leva por vezes à cumplicidade." Foi aí, conta, que ela e Hollerith, o reitor da catedral, começaram a trabalhar no texto, com a esperança de que galvanizasse os americanos, à imagem do que aconteceu com a resposta de Welch a McCarthy.
Não é, diz Budde, uma forma de entrar em diálogo com Trump, mas um apelo ao público americano, a quem os líderes da catedral querem dizer que "isto não tem de ser normal, não o aceitamos como normal".