"Espanha foi o primeiro confronto entre o fascismo e o comunismo"
No documentário Extranjeros de Sí Mismos fala dos jovens que combateram na Guerra Civil Espanhola de 1936-1939 mesmo sem serem espanhóis, como os brigadistas e os italianos. Foi mesmo um ensaio para a Segunda Guerra Mundial?
A Guerra Civil Espanhola foi muitas coisas, nenhuma delas boa. Primeiro que tudo, foi uma rebelião contra a ordem constitucional. É óbvio que as coisas na República não iam bem e já tinha havido outras tentativas de golpe de Estado, que setores do Exército estavam aliados às forças mais conservadoras e que o caos se instalava na vida quotidiana, mas a guerra não era necessária. E foi sem dúvida mais do que uma guerra civil. Foi o primeiro confronto entre o fascismo e o comunismo, entre a revolução e a contrarrevolução, entre a ditadura militar e o regime republicano democrático. Foi também uma guerra de religião, de nacionalismos, de luta de classes. E, sem dúvida, foi um ensaio para a II Guerra Mundial. Na Guerra Civil Espanhola envolvem-se os contendores da Guerra Mundial. Foi o prólogo dessa guerra entre duas formas de compreender o mundo: o fascismo e uma coligação de democratas e o comunismo. O fascismo, que venceu em Espanha ainda que com peculiaridades ibéricas, foi o perdedor do futuro conflito. E a coligação entre o comunismo e a democracia revelou-se impossível de manter. Já se tinha visto em Espanha as contradições entre as esquerdas comunistas, os anarquistas e os republicanos de diferentes origens. Em Extranjeros de Sí Mismos comprova-se o engano que sofreram tantos jovens de ambos os lados por terem posto a sua vida e as suas esperanças nas mãos de interesses que não eram tão claros ou nobres como eles pensavam. A Guerra Civil foi também uma guerra internacional, com muito mais ajuda ao lado de Franco pelas potências alemã e italiana do que a ávara ajuda ao lado republicano pelo estalinismo. A inibição da comunidade internacional foi vergonhosa. E as Brigadas Internacionais um idealismo com demasiado controlo estalinista.
Nasceu em 1952, já bem depois da guerra, mas viveu ainda duas décadas sob a ditadura de Franco. Falava-se da Guerra Civil em sua casa? Houve familiares em lados opostos da barricada?
Na minha casa nunca nos quiseram falar da guerra. Era um assunto que gerava mais silêncio do que adesões a um lado ou a outro. Persistia o medo da grande repressão. A informação era a do lado vencedor oficial, o regime de Franco, cheia de retórica triunfante, de ideias imperiais e manipulação informativa. Tiveram de chegar os anos 70, os historiadores e os hispanistas, os livros do exílio, para começarmos a saber o que tinha acontecido. Eu tinha uma mãe que simpatizava com o franquismo, embora não sendo fanática, e um pai que escondia o passado. Só soubemos depois de sua morte que havia sido saneado pelo franquismo. E só era um liberal que teve o primeiro emprego como professor na zona vermelha. Pertenço à geração a quem se tentou manipular a história. Acho que é por isso que nos interessámos tanto, por aquilo que tinha de proibido, de silêncio. Também tivemos de nos libertar das posteriores interpretações interessadas. O passado deve ser visto sem o peso do confronto dos lados e da carga ideológica. Agora pode fazer-se. Deve ser feito e mais ainda quando o populismo em ambos os lados ataca novamente. Creio que, como então, o caminho é o constitucional.
Lorca, Buñuel, Mercader, todos foram temas do seu cinema. Sente que essas personagens, de um modo ou outro ligadas à Guerra Civil, são mal conhecidas?
Acho que por causa desse silêncio de tantas histórias, por esse desejo de conhecer a verdade da nossa história, o meu cinema documental quis investigar o passado e as zonas escuras à esquerda e à direita. A minha primeira longa-metragem, Asaltar los Cielos é uma abordagem ao assassino de Trotsky, o estalinista espanhol Ramon Mercader. Um trabalho sujo da esquerda. Depois vieram os filmes sobre Lorca, o mais simbólico dos republicanos assassinados. Sobre Buñuel, esse génio espanhol que foi obrigado a fazer a maioria dos seus filmes no exílio. E muitos outros, como Alberti e Francisco Ayala, que representam a rutura cultural que implicou a guerra. Também me interessaram os do lado franquista. A Divisão Azul que lutou com o exército nazi, os voluntários italianos e algumas figuras da arte e da cultura que durante certo tempo foram franquistas. Gostaria de fazer um documentário sobre a Falange e suas contradições.
Que história da Guerra Civil lhe ensinaram na escola? E como, depois de tudo o que leu, a resume?
A história escolar sobre a guerra, como já disse, estava cheia de mentiras e mistificações. De deturpação e imposições. Ainda eram tempos em que éramos forçados a cantar os hinos franquistas e a saudar com o braço levantado dando vivas ao caudilho e aos caídos "por Deus e pela Espanha" de um só lado. Naturalmente, o preconceito e a desinformação são curados viajando, lendo e conhecendo outras pessoas, outras opiniões. Há várias décadas que se conhecem os melhores livros, os mais rigorosos, que foram escritos por hispanistas de opiniões diferentes, mas os dados são teimosos. Gosto de ler as memórias de ambos os lados, memórias literárias de fascistas e republicanos e, é claro, os mais fiáveis livros com a história já elucidada.
Arturo Pérez-Reverte publicou há meses um livro em que tentou explicar a Guerra Civil aos jovens sem tomar partido. Mesmo assim foi criticado pelos herdeiros de ambos os lados. É possível, 80 anos depois, chegar a um consenso sobre o que foi um conflito que pôs irmãos contra irmãos, pais contra filhos, de certeza milhares de amigos contra amigos?
Tenho admiração e amizade por Arturo Pérez-Reverte, fomos camaradas jornalistas e algumas vezes trabalhei visualmente na promoção de seus romances. Esse livro sobre a Guerra Civil explicada aos jovens creio que é um bom esforço, com uma excelente intenção, mas ainda existe dor, diferenças e feridas não fechadas em ambos os lados. Somos um país admirável, mas tivemos demasiadas guerras civis. E as consequências não deixarão de se fazer sentir até que passem várias gerações e sejamos capazes de viver compreendendo as nossas diferenças e a nossa história comum. Acho que a Lei da Memória Histórica deve cumprir as suas motivações nobres, mas não em busca de vingança ou confrontos estéreis. Também acho que não deve continuar a existir mortos por sepultar nas estradas e ravinas da nossa geografia. Houve mortes e excessos de ambos os lados, todos abomináveis. Mas a repressão subsequente exercida foi apenas feita pelo lado vencedor.
Há para si algum herói da Guerra Civil Espanhola?
Se tivesse de destacar apenas um herói, uma figura histórica da Guerra Civil, acho que diria o general Vicente Rojo. Homem de ideias religiosas convictas, militar de enorme dignidade, mais perto da Espanha conservadora do que revolucionário. Profissional que tinha jurado lealdade ao regime democraticamente eleito, à República, e que mantém a fidelidade porque não está de acordo com o golpe antidemocrático. Ele nunca foi um vermelho - apesar da sua história e do seu apelido [Rojo em espanhol é vermelho] - e nunca deixou de ser nobre e justo nas suas ações. O heroísmo também pode ser encontrado nos jovens, nos milhares que vieram para dar a sua vida por ideais a um país que não era o seu, mas que sabiam que aqui também se jogava o futuro do mundo ocidental, os brigadistas internacionais. Muitos foram recrutados pelos movimentos comunistas, mas outros vieram com muito mais liberdade de ação e pensamento. Paradigma destes últimos foi o escritor George Orwell, que deixou páginas extraordinárias sobre o que viu na guerra. Também admiro o que escreveu o católico Georges Bernanos. A Guerra Civil deu exemplo de heroicidade, mas também de mesquinhez. Acho que devemos contar tudo.
Em tempos, deu uma entrevista em que elogiava muito a transição para a democracia a seguir à morte do ditador em 1975. É um sucesso esta Espanha pós-Franco apesar do atual impasse político?
Sem dúvida, um dos melhores exemplos de que os espanhóis, a maioria deles, são capazes de superar as diferenças deixadas pela Guerra Civil foi o modo como o país foi renovado nos tempos da nossa chamada transição. Em muitas coisas exemplar e ainda espelho válida para a atuação da política e dos políticos do nosso tempo. Foi construída entre todas as origens ideológicas, sociais e nacionais, capazes de consenso para buscar acordos, de tentar somar com o que nos une e resolver o que nos separa. Sim, a novidade é que se valorizam pouco aqueles tempos e a predisposição ao diálogo. Agora surpreende-me que alguns dos chamados novos políticos, em tantas coisas já tão gastos, tão velhos, e de língua mais próxima do comício do que da sinceridade, sejam capazes de negar o progresso e as lições que podemos tirar desses tempos de mudança e de convivência. E não nos esqueçamos de que, então, vivíamos o horror do terrorismo da ETA e as suas mortes injustificáveis. Creio que estamos realmente vivendo um impasse político, uma fase de confusão, em que estão pescando alguns que não acredito que conheçam as artes da pesca, e o rio que nos leva. Eu não quero naufrágios nem imobilismos, acredito em acordos, pactos e na possibilidade de governar a partir da Constituição. Sem negar que devem ser consensualizadas mudanças que nos façam ser mais justos e fortes.
Como diretor do Instituto Cervantes acha que, para o bem e para o mal, a Guerra Civil, com os seus mitos, contribuiu para a imagem de Espanha de paixões fortes que hoje existe?
Sem dúvida, somos apaixonados. Dizia um poeta, Gil de Biedma, que "somos um país entre duas guerras civis." Felizmente, acho que já não é assim. Nunca voltaremos às guerras de outrora, mas também devemos ser capazes de ultrapassar a nossa história a partir do conhecimento e não escondendo o que fomos. Temos de aprender com os nossos erros. Como disse outro espanhol, mas muito americano, George Santayana: "Os povos que desconhecem a sua história estão condenados a repeti-la." Não quero repetir qualquer uma dessas histórias trágicas. Atualmente há uma excelente exposição no Cervantes de Lisboa sobre Agustí Centelles, o mais parecido com Robert Capa dos nossos fotógrafos de guerra. Até à morte de Franco não tínhamos podido ver as fotos por causa do medo e da censura. Não conseguiu em vida o reconhecimento que merecia. Como ele muitos outros fotógrafos espanhóis que tiveram de silenciar a sua obra ou ir para o exílio. Há que recuperá-los e reconhecermos os nossos erros. Devemos ver o que fomos, mesmo que às vezes nos indignem alguns comportamentos.
Se tivesse de aconselhar um livro sobre a Guerra Civil qual seria?
Mais do que um livro recomendaria um autor. Manuel Chaves Nogales. Extraordinário jornalista e escritor espanhol, sevilhano que morreu nos anos da Segunda Guerra Mundial no exílio em Londres. Foi capaz de incomodar com a verdade contada, com suas crónicas livres, com a sua capacidade de denunciar os excessos, de onde quer que viessem, o que é um grande exemplo de superação dos lados na hora de contar o que fomos. Poderia citar um dos seus livros fundamentais Sangre y Fuego. Mas não devemos esquecer as suas crónicas da França, da Alemanha nazi, do franquismo inicial, da República. É uma excelente maneira literária e jornalística de nos aproximarmos das nossas verdades. Capaz de sobreviver sem agradar a um lado ou o oposto. Foi um dos melhores e que mais livremente abordou aquela nossa história ainda tão viva apesar de terem passado 80 anos.