Maria Fernanda Espinosa: "Saída da crise venezuelana só pode ser pela via pacífica e do diálogo"
A equatoriana Maria Fernanda Espinosa, eleita 73.ª presidente da Assembleia-Geral da ONU a 5 junho de 2018, é a primeira latino-americana e a quarta mulher a assumir este cargo em 73 anos de história das Nações Unidas. E é nessa qualidade que reitera que a saída para a crise política venezuelana "só pode ser uma" que é "a via pacífica e do diálogo", saudando as várias iniciativas diplomáticas em curso que tentam alcançar tal meta.
"A única maneira é a via pacífica, é a via do diálogo, é a via da negociação", diz Maria Fernanda Espinosa, numa entrevista à agência Lusa, por ocasião da sua visita a Portugal que decorreu entre sexta-feira e domingo.
Questionada sobre os passos que têm sido dados pela ONU em relação ao impasse político que se prolonga há cerca de seis meses na Venezuela, desde a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino do país a 23 de janeiro, e ao agravamento da crise humanitária naquele país liderado pelo Governo do Nicolás Maduro, a representante explica que a organização internacional tem vindo a atuar "em dois níveis".
"O primeiro é que a ONU, com toda a sua estrutura humanitária, é aquela que está a responder, agora com o apoio da Cruz Vermelha Internacional, às necessidades imediatas e concretas do povo venezuelano. E isso é muito importante, porque é a vida diária, é a escassez diária, são as necessidades diárias da população", indica a ex-ministra equatoriana, manifestando "uma profunda preocupação" pela situação em que vivem os venezuelanos.
Ainda neste nível de atuação, a representante admite que as coisas nem sempre correm "da forma perfeita" como gostaria a ONU "por causa de várias restrições que existem".
O segundo nível é, segundo Maria Fernanda Espinosa, o apelo que é feito à comunidade internacional para procurar uma saída, "que só pode ser uma, de acordo com aquilo que é estabelecido pela Carta das Nações Unidas".
Nesse sentido, a presidente da Assembleia-Geral da ONU destaca as várias iniciativas que estão a ter lugar em diferentes zonas geográficas, e com múltiplos intervenientes internacionais, que tentam alcançar a meta do diálogo e da negociação.
É o caso do Grupo de Contacto Internacional (GCI), que foi criado pela União Europeia (UE) com alguns países da América Latina e no qual Portugal está presente, e do chamado "Mecanismo de Montevideu", proposto pelo México e Uruguai. "Um processo que também está, eu diria, na sua fase inicial, mas que é muito promissor, são os diálogos de Oslo, na Noruega, que já tiveram dois momentos e esperamos que realmente possa existir um novo momento, uma nova oportunidade, para continuar a estabelecer consensos entre todos os setores da oposição e do atual Governo da Venezuela", refere.
E reforça: "Todos os esforços que são necessários para alcançar uma solução pacífica e negociada para a crise política venezuelana. É o único caminho. Como presidente da Assembleia-Geral da ONU não posso dizer outra coisa e o que estou agora a dizer já afirmou também, de forma reiterada, o secretário-geral [da ONU, António Guterres]".
Maria Fernanda Espinosa salienta que Guterres foi ainda mais longe nas suas declarações, uma vez que manifestou estar disponível "para usar" os seus bons ofícios "caso as iniciativas em curso assim o solicitassem".
No sábado, e após uma visita de três dias à Venezuela, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, anunciou que a ONU e o Governo venezuelano chegaram a um acordo para que a organização tenha, pela primeira vez, uma equipa técnica para monitorizar a evolução da situação no país.
À crise política na Venezuela, país que conta com uma significativa comunidade de portugueses e de lusodescendentes, soma-se a uma grave crise económica e social, que tem tido repercussões no abastecimento energético e na distribuição de medicamentos e de alimentos. Números da ONU apontam que quatro milhões de venezuelanos terão saído do país desde 2015 para procurar proteção ou melhores condições de vida.
Em 2018, a Venezuela foi o país com o maior número de novos requerentes de asilo (341.800), segundo dados fornecidos na semana passada pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR).
Quando em 2018 assumiu a presidência da Assembleia-Geral da ONU, Maria Fernanda Espinosa queria dar ênfase à participação política das mulheres e conta agora à Lusa que António Guterres, "um feminista convicto", foi parceiro fundamental.
"Dei muito ênfase ao tema da participação política das mulheres. Porque ainda existem disparidades enormes. Dos 193 países [que integram a Assembleia-Geral] apenas 19 têm chefes de Estado ou de Governo que são mulheres. Os números falam por si. Dezanove em 193 países, 75% dos parlamentares no mundo são homens, só apenas 25% são mulheres", diz.
Na reta final do seu mandato, que deixará em setembro, Maria Fernanda Espinosa descreve que uma das várias ações que realizou nesta área foi a organização da primeira reunião de mulheres chefes de Estado e de Governo. "A ideia era que pudéssemos partilhar experiências e obstáculos com jovens mulheres líderes, que muitas vezes têm medo de entrar no espaço da política por causa da própria discriminação, por causa dos níveis de violência política contra as mulheres. E isso eu conheço pessoalmente, eu sei como funciona, é um sistema muito violento, que exige em dobro às mulheres que estão em cargos de tomada de decisões", afirma a diplomata e antiga ministra dos Negócios Estrangeiros e da Defesa do Equador.
Também conta que ao longo do último ano "em cada painel, em cada reunião de alto nível, em cada espaço de diálogo" que organizou na ONU a paridade de género foi sempre alcançada. E neste campo, segundo afirma, contou um parceiro importante: o secretário-geral da ONU, António Guterres.
"Eu sempre digo, e repito, o secretário-geral é um feminista convicto. Ele conseguiu num curto espaço de tempo que todas as posições de liderança, os mais altos cargos no secretariado-geral da ONU, estejam ocupadas por mulheres e que exista paridade total na alta administração da ONU. Isso é um feito histórico e isso se faz com a decisão política de um líder feminista como é António Guterres", realça.
Maria Fernanda Espinosa reconhece, porém, que nem todas as suas iniciativas neste campo tiveram êxito e que "há muito ainda por fazer". "Acredito que isto está também diretamente ligado com a necessidade de uma profunda mudança cultural, porque não estamos a fazer bem as coisas para reduzir a violência contra as mulheres, para reduzir a discriminação. E estamos no século XXI e estas coisas já não deveriam acontecer. Já não deveríamos ter sistemas de quotas. Fui uma pessoa tradicionalmente contra as quotas, mas agora me dou conta que as quotas são necessárias, são um passo necessário até a uma igualdade plena", afirma.
Mas não é só na questão da paridade que Maria Fernanda Espinosa quer lançar um alerta, lembrando que "dolorosamente a violência contra as mulheres e as jovens aumentou". "Se virmos o histórico de feminicídios, por exemplo, é algo inaceitável", diz a líder da Assembleia-Geral da ONU, enumerando ainda, entre outras formas de violência e de discriminação que afetam atualmente mulheres e jovens no mundo, a exclusão de milhões de meninas que não podem ir à escola ou a negação a mulheres do direito de aceder a serviços de saúde sexual e reprodutiva.