Filha de José Eduardo dos Santos foi contra nomeação da irmã para a Sonangol

A deputada do MPLA 'Tchizé' dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, afirmou que a nomeação de Isabel dos Santos não fez sentido. Numa longa entrevista disse ainda que quer continuar o legado do pai e comentou a transição do poder em Angola.
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A posição foi assumida em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, por Welwitschea 'Tchizé' dos Santos, considerada a filha mais próxima, politicamente, de ex-Presidente angolano (1979-2017).

"Não era por falta de competência [de Isabel dos Santos], pelo contrário. É porque já temos tão poucos empresários capazes de gerar os empregos que aquela empresária gerava, para que é que havia de estar a ir para o setor publico? Era muito mais fácil nomear esta grande empresária consultora do presidente do conselho de administração" da petrolífera estatal, afirmou.

A empresária Isabel dos Santos foi nomeada em junho de 2016, pelo pai, José Eduardo dos Santos, presidente do conselho de administração da petrolífera angolana Sonangol.

"Do ponto de vista da capacidade de gestão, não há aqui dúvida nenhuma que era uma das melhores apostas a fazer. Mas do ponto de vista do interesse nacional eu acho que não fazia sentido", enfatizou 'Tchizé' dos Santos.

A nomeação foi envolta em polémica, com recursos em tribunal - recusados -- alegando violação da lei da Probidade Pública, face à escolha da filha mais velha para aquele cargo por parte do Presidente angolano.

"Quando ela foi nomeada para a presidente da Sonangol também não concordei. Veementemente discordei e fiz de tudo para tentar impedir", recordou 'Tchizé' dos Santos, deputada no parlamento angolano há três legislaturas e a única presença do 'clã' de José Eduardo dos Santos no Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido no poder desde 1975.

Com a chegada de João Lourenço ao poder em Angola, eleito Presidente da República em agosto de 2017, sucedendo a José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos acabaria exonerada do cargo na Sonangol em novembro do mesmo ano, ao fim de cerca de 18 meses a liderar a petrolífera.

"Não achava que fizesse sentido uma empresária, tão válida no setor privado, a melhor, a maior empregadora do setor privado, estar a ser desperdiçada para ir gerir apenas a Sonangol, porque ela ficava depois proibida, ou impedida, de estar depois nas outras empresas", apontou ainda 'Tchizé' dos Santos.

A deputada do MPLA e irmã de Isabel dos Santos alega que defendeu que a "experiência" da empresária devia ter sido usada de outra forma.

"Achava que, se calhar, fizesse mais sentido estar no Conselho da República, na área empresarial, e poder aconselhar o Presidente da República, poder assessorar o Presidente da República, poder reunir diretamente com o Presidente da República, o anterior e o atual", disse ainda, recordando que Angola "não tem muitos [empresários] daquela dimensão".

"Vamos ser realistas, em termos de performance, a [empresa de telecomunicações] Unitel é uma empresa muito mais transparente e muito mais bem gerida do que a Sonangol. Tal como é a [distribuidora de canais de televisão] ZAP, tal como é o Candando [rede de hipermercados], tal como é o banco BIC", exemplificou a deputada, aludindo a empresas angolanas em que Isabel dos Santos é acionista e administradora.

"Não quero ser um segundo Rafael Marques"

Assumindo que a transição no poder não é a que Angola esperava, a deputada do MPLA defendeu que o Presidente da República deve deixar de ser o "único" que pode "brilhar".

Questionada pela Lusa sobre uma a existência de uma "caça às bruxas" em Angola, a deputada e empresária foi lacónica: "Eu não posso afirmar isso [caça às bruxas], porque se afirmar isso se calhar saio daqui e sou processada pelo Presidente da República por difamação. E eu não quero ser um segundo Rafael Marques", numa referência ao ativista, alvo de vários processos por denúncias sobre a liderança de José Eduardo dos Santos.

Tendo presente o recente momento de tensão entre o atual Presidente, João Lourenço, que acusou José Eduardo dos Santos de ter deixado os cofres públicos "vazios", prontamente refutadas pelo ex-chefe de Estado, a deputada confessa a surpresa.

"Eu falo como angolana, não era a transição que nenhum dos angolanos esperava. Para mim, a transição era uma festa, um momento ímpar e havia ali uma transição extremamente pacífica e sem contradições. Entretanto, pelas declarações do ex-Presidente e do atual Presidente, há uma contradição pública, não é desejável para nenhum partido politico", no caso o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), afirmou.

Continuar o legado do pai

'Tchizé' dos Santos, assumiu hoje o objetivo de continuar o "legado" do pai, apesar da resistência que diz sentir em alguns setores do partido, desde setembro liderado por João Lourenço. A deputada do MPLA reconhece que a sua intervenção ativa no partido, tem motivado contestação.

"Eu temo que, depois desta entrevista, possa chegar a Luanda e me seja instaurado um processo disciplinar dentro do partido e ser expulsa do Comité Central, por exemplo. E seria muito conveniente porque de acordo com a cultura do MPLA, os únicos que podem ser candidatos à presidência do partido são os membros do Bureau Político e os membros do Comité Central", afirmou.

É que, ressalva a empresária, de 40 anos e desde 2008 no parlamento angolano, "ser do Comité Central [do MPLA] faz muita diferença".

O MPLA é liderado desde setembro último por João Lourenço, precisamente um ano depois de ter assumido o cargo de Presidente da República de Angola, sucedendo em ambos a José Eduardo dos Santos, numa transição que tem sido marcada por clivagens.

"Não vou julgar ninguém, não vou apontar o dedo a ninguém, mas posso dizer que José Eduardo dos Santos fez questão de, pelo seu próprio pé, deixar o poder, fazer a transição, foi porque ele quis deixar, como o seu maior legado, a democracia plena e irreversível, o Estado democrático de direito ideal ou pelo menos a caminhar para tal. E como filha, eu sinto que é este o legado a que me tenho que agarrar, a par do da paz, e lutar por ele. Esteja onde estiver", afirmou.

Questionada pela Lusa sobre o seu futuro político, desde logo na hierarquia do MPLA, 'Tchizé' dos Santos insiste que pode ser "mais útil no setor privado" ou na sociedade civil.

Ainda assim admite: "É como em tudo, as pessoas que em 1961 [início da luta armada contra o poder colonial português] pegaram em catanas... ninguém quer pegar numa catana e correr o risco de ser morto por um canhão. Quando as pessoas não têm mais nada a perder, lançam-se para a frente".

"Eu por acaso não sonho ser Presidente da República, mas se sonhasse, porque é que as pessoas me têm que olhar com um ar de piada? Mas o senhor que foi nomeado agora para governador de Luanda e o ministro Adão de Almeida, que têm a mesma idade do que eu, já são vistos como potenciais candidatos. E porque é que tenho de ser vista como uma piada?" -- questionou.

"Não estou a dizer que queira ou que vá ser, mas enquanto for a uma realidade que uma mulher seja posta em causa desta maneira eu vou continuar a lutar", criticou.

Portugal tem preconceito com africanos

'Tchizé' dos Santos afirmou que encontra em Portugal um clima de "preconceito" para com africanos e afrodescendentes que não encontra noutros países ocidentais.

"Hoje, antes de vir para aqui, fui para um 'shopping' almoçar e todas as pessoas que eu via que eram africanas, que estavam ali a trabalhar, estavam a servir à mesa, estavam nas cozinhas, algumas a dobrar roupa nas lojas. Quando chego a Angola e vou para o 'shopping', os portugueses que eu vejo são os donos das lojas, são os membros do conselho de administração", criticou.

"Porque é que quando se vai a África e se vê um português, em qualquer situação ele está numa situação de vantagem, ou de igualdade na pior das hipóteses, e quando se vem a Portugal e se vê um africano ele está sempre numa posição de desvantagem", apontou, admitindo o "ressentimento e tristeza" dos angolanos perante este cenário.

Casada com um cidadão portugueses e com filhos luso-angolanos, 'Tchizé' dos Santos diz igualmente que nos negócios que tem em Portugal nunca encontrou africanos num balcão de um banco.

"Quando vou para um banco em Portugal nunca vi nenhum negro, eu nunca fui atendida por um negro no balcão, o único que conheci que chegou a diretor de um banco foi o Álvaro Sobrinho [Banco Espírito Santo Angola] e foi um milagre", criticou.

"Vou para Angola e vejo brancos em todos os níveis", mas "curiosamente, quando se vai a um bairro recôndito onde não há nada, não se vê brancos. Só se estiver lá a vender alguma coisa, ou a fazer solidariedade ou [for] o padre", acrescentou.

Ainda assim, critica as declarações do colega deputado angolano, David Mendes (União para a Independência Total de Angola, UNITA) que, em pleno parlamento angolano, no final de dezembro, disse estar "farto dos portugueses" em Angola.

"Foi uma infeliz intervenção (...) Obviamente que eu não estou em Portugal para criticar os portugueses e não digo que em Angola não haja racismo, que há. Mas em Angola, quiçá o que há é ressentimento e uma tristeza por parte dos angolanos, justamente por esta desigualdade, que faz com que os povos portugueses que lá estão, e que até estão de coração aberto e de boa-fé, paguem por tabela por este desequilíbrio", comentou.

Por isso, defende, é tempo de uma "reflexão" em Portugal sobre as oportunidades nas duas sociedades, que, ainda assim, assume, têm vindo a convergir nos últimos anos.

"Eu convidaria os portugueses todos a refletirem, a porem a mão no coração, sobre a maneira, sobre o espaço que é dado aos afrodescendentes e aos africanos em Portugal. Inclusive solidarizo-me e fico mais triste pelos portugueses que são afrodescendentes, porque eu por acaso até me casei com um português e os meus filhos são portugueses, são afrodescendentes", disse.

"Não é uma questão de racismo, é uma questão de preconceito e de ignorância", acrescentou.

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