Em seis meses, 21 mil norte-americanas pediram comprimidos para abortar online
Em 2004, antes da legalização do aborto em Portugal, a médica holandesa Rebecca Gomperts trouxe o barco da Women On Waves para as águas internacionais ao largo da Figueira da Foz (foi impedido de entrar nas águas nacionais por dois navios de guerra portugueses), para distribuir a pílula abortiva às mulheres grávidas até às seis semanas e meia que estivessem interessadas em interromper a gravidez.
Mas, 15 anos depois, Gomperts já não precisa de um barco: usa a Internet para, através da sua organização Women on Web, processar os pedidos de auxílio das mulheres em todo o mundo, enviando por correio os dois comprimidos necessários para a realização de um aborto médico (mifepristona e misoprostol). Em 2018, foi criado um site especialmente para os EUA: o Aid Access.
Segundo o The Guardian, que teve acesso aos dados, entre outubro de 2018 e março deste ano, 21 mil mulheres norte-americanas pediram ajuda à Aid Access, sendo que entre um terço e metade dessas mulheres receberam as pílulas abortivas no correio. A maioria vivem em estados que estão a restringir cada vez mais o direito ao aborto.
Por causa do seu trabalho, a médica holandesa já está na mira das autoridades norte-americanas. "Não serei dissuadida. Quando as mulheres dos EUA que procuram interromper a gravidez antes das nove semanas me consultarem, não lhes virarei as costas. Continuarei a proteger o direito humano e constitucional das minhas pacientes a ter acesso a um serviço seguro de aborto", escreveu Gomperts no site da sua organização.
Na semana passada, o Alabama aprovou uma lei que é a mais restritiva de todos os estado no que diz respeito ao acesso ao aborto, legalizado até às 24 semanas nos EUA pela decisão do Supremo Tribunal Roe v. Wade de 1973. No Alabama, o aborto passa a ser proibido em todos os casos, incluindo violação ou incesto, exceto no caso de risco grave de saúde para a mãe (a lei não deverá entrar ainda em vigor, seguindo-se uma longa batalha judicial).
Já depois do Alabama, o Congresso do Missouri aprovou um projeto de lei que proíbe o aborto a partir da oitava semana (incluindo no caso de violação ou incesto) caso a Roe v. Wade seja revogada. E já antes estados como Kentucky, Mississippi, Ohio ou Georgia tinham aprovado restrições a proibir a interrupção da gravidez a partir do momento em que se ouve o batimento cardíaco do bebé, por volta das seis semanas, antes de muitas mulheres descobrirem que estão grávidas.
"Os serviços e cuidado que eu garanto são essenciais num cenário em que mais e mais estados estão a desmantelar o acesso a abortos clínicos através de regulamentação direcionada a quem providencia o aborto, proibindo o atendimento antes que muitas pessoas descubram que estão grávidas e criminalizando totalmente os abortos", escreveu Gomperts, dizendo que os estudos mostram que estas proibições prejudicam principalmente as mulheres que vivem na pobreza, as vítimas de violência doméstica e as jovens. "Uma em quatro mulheres dos EUA fará um aborto até aos 45 anos", indica.
A Aid Access, que foi criada em maio de 2018, oferece consultas online, sendo a receita passada por uma farmácia na Índia, que os envia diretamente para a casa das mulheres norte-americanas. No site, diz-se que o preço do serviço é de 80 euros, mas que se oferece ajuda a quem não puder pagar esse valor. Só em 2018, Gomperts disse que prescreveu 2581 abortos médicos a 11 108 mulheres que a consultaram.
No dia da mulher deste ano, Gomperts recebeu uma carta da FDA (a organização responsável pela saúde pública e controlo dos medicamentos nos EUA) a ordenar que a Aid Access deixasse de distribuir as pílulas abortivas nos EUA, indicando que ela está a violar as leis federais ao vender "medicametos novos sem marca e sem aprovação". A médica lembra contudo que ambos os medicamentos que receita têm aprovação da FDA.