"É difícil encontrar guerras onde a religião não tenha sido usada como arma"
Todas as religiões dizem ser de paz. É mesmo assim, ou há uma carga bélica nelas, nem que seja por competirem com outras?
Os dois melhores exemplos são o Hinduísmo e o Islão, porque ambas falam sobre a guerra e até a legislam! O que não quer dizer que o objetivo seja a competição com as outras religiões! No Hinduísmo, a guerra aparece num dos seus textos mais sagrados, o Mahabharata, que além de ser uma das mais antigas narrativas épicas da humanidade, é também a história da Índia. Metade do livro é dedicado à batalha pelo trono de Hastinapura, hoje Nova Dehli, e relata com detalhe a importância da diplomacia na guerra, as formações militares, as armas utilizadas, as reuniões de preparação, os discursos proferidos antes das batalhas e até as dúvidas e anseios individuais dos vários heróis. No Islão a guerra é mencionada várias vezes, quer na biografia de Maomé, a Sira, como no Alcorão. Mas na Surata 2:190 está bem claro que a guerra só deve ser feita em legítima defesa, e com regras bem definidas. A legislação bélica foi necessária num contexto de Arábia pré-islâmica, sem regras nem moral, os chamados tempos de Jahiliyyah e Maomé teve um papel determinante para acabar com essas práticas bárbaras. Quer no Hinduísmo, como no Islão, a guerra surge em contextos históricos precisos, e deve ser sempre compreendida dentro dessas balizas. Retirar esse enquadramento, aplicar esses conceitos de forma arbitrária, e sem estudar a fundo a mensagem de cada religião, é perigoso e adultera por completo a mensagem inicial. É, no entanto, muito fácil fazê-lo, e o ISIS, "Autoproclamado Estado Islâmico" é apenas um desses exemplos.
Quem mata em nome de uma religião, seja o fundamentalista islâmico ou o extremista cristão, consegue ir buscar argumentos à história, recente ou não, para justificar os seus atos. Como podem os correligionários demarcar-se desses abusos em nome da fé?
A iliteracia religiosa que hoje se vive é uma das principais causas do terrorismo e extremismo religioso. O desconhecimento dos princípios básicos das religiões deturpa não só a forma como são vistas pelos outros, mas também como são vividas pelos próprios crentes. Esta tendência é resultado do crescente distanciamento das religiões, e da negação da importância e da influência que estas ainda exercem no século XXI.Não nos podemos esquecer que a calendarização do tempo está feita em função das festas religiosas, e isto é válido em qualquer parte do mundo! Mas não ficamos por aqui! As regras/restrições alimentares e de vestuário, presentes em todas as religiões, regulam a vida de milhões de pessoas de todo o mundo e têm um peso determinante na economia dos países. A dieta Halal dos muçulmanos, que exclui a carne de porco e os produtos provenientes da fermentação, como as bebidas alcoólicas e impõe um abate próprio dos animais, ou a Kosher dos judeus, que tem os mesmos princípios, mas com uma cadeia de produção muito mais rígida, permitindo no entanto o álcool, ou ainda os Hindus e os Budistas que seguem uma dieta vegetariana, são bons exemplos. Já o Cristianismo optou por não ter regras e aceitar todo o tipo de alimentos, exceto em determinados períodos/festas, como por exemplo durante a Quaresma que agora vivemos. Mas há muito mais! A cultura e os valores éticos que estão profundamente entrelaçados nas religiões, condicionam o nosso comportamento e caracterizam o nosso modo de vida. O conhecimento das religiões e dos seus princípios fundamentais devia ser obrigatória no mundo globalizado, e de migrações, que hoje vivemos. Serviria não só para evitar desvios aos princípios essenciais das religiões, evitando o terrorismo em nome de deus, mas também para perceber que há diferentes maneiras de viver e de estar. Tal como dizia Averrois: "A ignorância leva ao medo, o medo conduz à raiva e a raiva leva à violência"
Estatisticamente, a maioria dos atentados recentes são em nome do islão, mesmo cheguem a matar outros muçulmanos. Alguma explicação?
Penso que o desconhecimento do Islão por parte daqueles que perpetram esses atentados terroristas é uma das principais causas. Estaticamente, a grande maioria são filhos de segunda ou terceira geração de imigrantes, que não conhecem o país dos seus antepassados e sentem-se desenraizados numa cultura que não é a que têm em casa. Por outro lado, seguiram a tendência de afastamento da religião, comum nas sociedades ditas Ocidentais, e por isso conhecem muito pouco sobre o Islão. Vivem de subsídios do Estado, não trabalham e dedicam-se a todo o tipo de atividades ilícitas e acabam por ser radicalizados na prisão, ou quando já estão perto de lá entrar. São presas fáceis para serem manipulados, com um discurso de ódio que eles creem ser o correto, porque não conhecem a sua própria religião, nem os princípios que ela defende. Acabam por fazer o que lhes é mandado, e por isso chegam a matar outros muçulmanos, na maioria os não sunitas.Mais uma vez defendo a necessidade de haver literacia religiosa para evitar más interpretações e radicalismos fáceis. Tem de haver também um mecanismo interno dentro das comunidades islâmicas para detetarem e controlarem os discursos de ódio. É claro que o mesmo se aplica às comunidades de outras religiões onde o radicalismo, infelizmente, também está a crescer.
Os supremacistas brancos, que matam para evitar o alegado desaparecimento do homem branco, podem ser ou não religiosos?
O discurso de ódio, racista e de supremacia branca, está a crescer dentro das comunidades protestantes evangélicas, que têm muita expressão nos EUA e no Brasil e foram determinantes para a eleição de Trump e de Bolsonaro. São anticatolicismo, anti Papa Francisco, anti-islâmicos, contra a imigração e o multiculturalismo.O extremismo protestante evangélico está a fomentar ódios que alimentam radicalismos e atos terroristas, como este que aconteceu na Nova Zelândia contra mesquitas. Está a ter um papel cada vez mais destacado no panorama político mundial, como por exemplo, retirar Jerusalém à Palestina, tal como foi defendido por Trump e Bolsonaro. A sigla WASP, White, Anglo-Saxon and Protestant, "Branco, Anglo-Saxão e Protestante", cada vez mais popular nos EUA, defende a raça branca contra negros, hispânicos e judeus, fomenta o nacionalismo, combate a religião alheia, seja ela o catolicismo, o Islão ou outras. Chegam por isso a aproximar-se da extrema direita nazista, defendendo Hitler e o extermínio dos judeus.Com o discurso fácil de estarem a vingar a cristandade pelos atentados terroristas islâmicos, têm ganho cada vez mais simpatizantes em todo o mundo, que desconhecem a verdadeira dimensão da sua causa.
Guerras religiosas foram mais mortíferas do que as guerras feitas em nome de um rei ou de um país?
A religião é um argumento fácil de manipular e tem sido usada ao longo da História, com muito sucesso diga-se, para conseguir vários objetivos políticos. É, portanto, muito difícil encontrar guerras onde a religião não tenha sido usada como arma. Dos inúmeros exemplos lembro, rapidamente, as cruzadas que mais não serviram para controlar as rotas de comércio que a expansão do Islão estava a tomar, as lutas fratricidas entre xiitas e sunitas pelo poder no mundo islâmico, entre protestantes e católicos, sendo a mais recente no final do século XX na Irlanda do Norte. Na atualidade, destaco, o que se passou na Síria, onde a propósito dos conflitos entre a maioria sunita e a minoria xiita no poder, se chegou a uma guerra de proporções globais, onde o que estava verdadeiramente em causa era a aliança Síria-Irão-Rússia e o acesso destas ao mediterrâneo; a guerra sangrenta no Iémen, que opõe xiitas e sunitas, e que mais não é senão a ambição de controlar o estreito de Bab el Mandab, uma das mais importantes check-points comerciais do mundo; ou o que se passa na igreja ortodoxa na Ucrânia e a sua separação do patriarcado de Moscovo, que mais não é que o reflexo da situação política entre os dois países.