Brasil. De pátria amada a pátria armada
Os memes na internet em que o último verso do hino brasileiro, "pátria amada Brasil", é substituído por "pátria armada Brasil", propagaram-se rapidamente logo após Jair Bolsonaro assinar o decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no país. No entanto, o decreto vale mais pelo simbolismo de ter sido o primeiro ato nacional do novo presidente da República, em obediência a uma das suas mais estridentes promessas de campanha, do que pelas alterações em si. As maiores mudanças, como a controversa possibilidade de porte de arma pela rua, estão por vir.
"Após voltarmos de Davos [cidade onde se realiza o Fórum Económico Mundial, dia 22] continuaremos conversando com os ministros para que, juntos, evoluamos nos anseios dos colecionadores, atiradores, desportistas e caçadores, sobre porte e monopólio", prometeu o próprio Bolsonaro via twitter.
A ideia é levar a discussão sobre o porte ao Congresso Nacional para lhe garantir mais legitimidade política e mais amparo jurídico. "Já temos o norte, que é a flexibilização da posse, agora queremos ouvir os deputados de maneira a ter um consenso [em relação ao porte]", disse o deputado Capitão Augusto, que faz parte da base de 299 parlamentares que apoiam o governo.
O porte, hoje autorizado apenas às forças armadas, polícias ou agentes penitenciários, é tão controverso que o ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, já fez questão de chamar o tema de "muito delicado" e de afirmar que "não há nenhum movimento" na sua pasta "no sentido de o debater". Moro, aliás, defendia medidas mais restritivas ao decreto assinado por Bolsonaro sobre a posse mas acabou vencido pela maioria dos conselheiros do presidente.
Decretada a flexibilização da posse por Bolsonaro e discutida a questão do porte no Congresso, a oposição, pela voz de Fernando Haddad, candidato à presidência derrotado em Outubro, já avisa que o objetivo seguinte é a legalização das milícias. "A segurança é dos primeiros direitos assegurados pelo estado moderno, a liberação de armas remete-nos à pré-modernidade e conduz-nos à privatização desse serviço público, a legalização das milícias é o próximo passo, há um projeto de lei de Bolsonaro sobre o tema", acusou.
As milícias são grupos paramilitares ilegais que garantem segurança em comunidades pobres do Rio de Janeiro, por exemplo, em troca da cobrança por serviços como gás, luz, água ou televisão a cabo clandestina.
No decreto de flexibilização da posse, cujo valor é, repita-se, sobretudo simbólico, Bolsonaro mexeu em pontos meramente burocráticos da lei. Agora, a renovação do registo de posse passará a ser feito de 10 em 10 anos e não de cinco em cinco e os interessados não terão mais de apresentar um comprovativo de "efetiva necessidade" de posse.
Na prática, muda pouco, porque antes do decreto qualquer cidadão brasileiro já podia comprar uma arma, desde que tivesse mais de 25 anos, ocupação lícita, residência fixa e cadastro criminal limpo - e cerca de 1000 euros para comprar o revólver, a pistola ou a espingarda em causa e pagar taxas.
Estranhamente, a maioria dos eleitores é contra a flexibilização da posse de armas, um dos cavalos de batalha do candidato mais votado, cujo gesto de campanha era imitar um disparo com a mão. Segundo sondagem do instituto Datafolha, 61% são contra a posse e 37% a favor.
A maioria dos especialistas ouvidos pela imprensa também são contrários, apoiando-se em estudos sobre o tema que indicam que "quanto mais armas disponíveis, mais mortes", como afirmou ao jornal Folha de S. Paulo o ex-secretário estadual de segurança Luiz Eduardo Soares. "E os polícias vão morrer e matar mais", acrescenta Elisando Lotin, sargento da polícia de Santa Catarina e pesquisador.
Entre os argumentos a favor da flexibilização está o do aumento estatístico de crimes no país. No entanto, quando em 2003 foi aprovado o estatuto de desarmamento, o número de mortes caiu de 29,1 por 100 mil habitantes para 25,5. Segundo estudo, esse desarmamento poupou cerca de 2500 mortes evitadas ao ano só em São Paulo.