As empreiteiras portuguesas que vão às obras de saltos altos e Obama homenageou

Natália e Cidália Luís começaram em adolescentes a ajudar os pais na empresa que estes criaram em 1985. À frente da M. Luis Construction desde 2008, as irmãs dizem ainda ser discriminadas por serem mulheres.<em> Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso Pela América do Tio Silva. Este artigo foi publicado originalmente a 9 de fevereiro de 2018)</em>
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Às oito da manhã, a sala de pequenos-almoços do Four Seasons de Georgetown, em Washington D.C., está cheia de gente vinda apreciar as iguarias do hotel: da sandes de abacate com molho ranchero aos ovos Benedict, passando pelas panquecas de limão e ricotta. Natália e Cidália estão sentadas a uma mesa diante de dois sumos regeneradores. "Viemos agora de viagem e isto ajuda a recuperar!", explica Cidália Luís-Akbar, enquanto a irmã mais nova bebe um golo da mistura esverdeada. A escolha do Four Seasons para esta conversa, num janeiro gelado na capital federal americana, não foi um acaso: as donas da M. Luis Construction têm uma ligação especial àquele espaço. Afinal foi ali que se casaram. "Com 11 meses de intervalo. Os meus pais costumavam dizer que quase foram à falência por causa de nós", ri Cidália. "Realmente, podíamos ter-nos casado no mesmo dia", devolve Natália Luís com uma gargalhada.

Nascidas em França, nos arredores de Paris, para onde os pais, naturais de duas aldeias perto de Pombal, emigraram nos anos 60, voltaram crianças para Portugal no pós-25 de Abril. Mas depressa Manuel e Albertina entenderam que, se queriam dar às filhas uma educação de excelência, tinham de sair de um país onde o caos pós-revolucionário chegou a deixar Cidália sem professor durante meses. A escolha foram os Estados Unidos, onde tinham família no Maryland. "Viemos para uma cidade chamada Kensington. A minha madrinha fez o sponsorship para a nossa família vir", conta Cidália, de 49 anos. Chegaram em 1979.

É num português perfeito, em que por vezes espreita um ligeiro sotaque americano, que a mais velha das irmãs Luís recorda como durante dois anos - até aos 13 - se recusou a falar inglês. Tudo porque o pai lhe dissera que se chumbasse voltava para Portugal. "Queria chumbar e não conseguia, por causa do sistema americano", recorda, enquanto saboreia umas torradas. Com apenas 7 anos, Natália, hoje com 45, sentiu menos a mudança. E recorda que, à chegada, os pais só lhes pediram duas coisas: "Que aproveitássemos a melhor educação possível e que deixássemos o mundo melhor do que o encontrámos."

O filósofo e a serial entrepreneur

Foi o que sempre tentaram fazer, desde crianças, aprendendo com os pais a ética e o valor do trabalho. "A minha mãe é uma força na natureza. É incrível. O meu pai é o humanitário, o filósofo, uma daquelas pessoas que vê o mundo com esperança. Tem quase 77 anos e todos os dias acorda cheio de esperança", conta Natália. Manuel Luís nasceu em Matos de Ranha, Albertina em Covão dos Mendes, ali perto. Enquanto ele sempre se dedicou à construção, ela foi tendo vários negócios. "A minha mãe é uma serial entrepreneur", exclama Natália, destacando o espírito empreendedor de Albertina, que teve um verdadeiro aviário com mais de duas mil galinhas, vendeu leite e pintou e vendeu loiça de barro, fazendo toda a família participar aos fins de semana. Foi ainda ela quem ensinou o marido a ler e a escrever.

Chegado à América, Manuel Luís foi fazer o que melhor sabia. Primeiro por conta de outros, mas rapidamente por conta própria, abrindo uma empresa de construção com um sócio. Não correu bem, mudou de sócio e começou outra. Por fim, em 1985 decidiu lançar-se a sós. Ou melhor, com a ajuda de Albertina. Ele andava no terreno a construir estradas. Ela fazia a contabilidade, dando uso às aulas que tivera à noite.

Adolescentes, Natália e Cidália começaram também a ajudar. "Fazíamos orçamentos, aprendíamos muito rapidamente. Aprendemos a negociar", lembra a mais nova das irmãs Luís, recordando que lá em casa sempre houve liberdade de expressão e quem tinha uma opinião podia apresentá-la, desde que tivesse argumentos para a defender. Na casa dos Luís, além dos trabalhos da escola, havia os "trabalhos da empresa". Uma vida diferente da de muitos jovens americanos, mas que os pais sempre conseguiram apresentar às filhas com toda a naturalidade. "Só percebi que éramos pobres quando cheguei à universidade. Achava que todos eram como nós. Tínhamos comida e tínhamos roupa. E amor e pais que nos deixavam ter as nossas opiniões", garante Cidália. Mas na universidade percebeu que "os outros miúdos tinham estado no campo de férias, na vela. E eu pensava: eu fui à lenha, fui à água!", ri-se agora.

Hoje a M. Luis Construction tem entre 300 e 500 empregados - dependendo da época -, fatura milhões todos os anos, trabalhando exclusivamente em obras públicas. E está num processo de profissionalização. Até porque Natália e Cidália não querem deixar um peso aos filhos - a primeira tem dois, Gabriel, de 13 anos, e António, de 10, e a segunda tem uma, Sofia, de 8. "Se um, ou os três, dos nossos filhos decidir que é isto que quer fazer, ótimo. Vai herdar uma empresa que não precisa dele para funcionar. É um sinal de sucesso."

Foi essa liberdade de escolha que os pais também sempre lhes deram a elas, tendo deixado claro que as filhas nunca trabalhariam na empresa. E foram de tal forma convincentes que, quando Natália terminou o curso de Gestão e Marketing Internacional - Cidália tirou Português e Espanhol -, já tinha três ofertas de emprego. "Sentei-me à mesa com os meus pais e a minha irmã para explicar qual pensava escolher. Era um negócio de moda em Nova Iorque, muito bem pago. Os meus pais olharam um para o outro e disseram: "Nós duplicamos isso"." Espantada com a oferta, pediu três dias para pensar. "Estava totalmente convencida de que essa opção estava fora de questão. Ia para Nova Iorque, trabalhar num arranha-céus, no mundo da moda. Mas decidi ficar", conta, sublinhando que foi a ideia de ficar perto da família que a convenceu.

O mesmo argumento acabou por convencer Cidália, três anos mais tarde, a juntar-se à irmã. "Liguei à Cidália, que estava a fazer o doutoramento, e disse-lhe: "Olha, acho que temos aqui uma coisa boa. Mas não consigo fazê-lo sozinha, não quero fazê-lo sozinha. Admites regressar?"" A irmã ri-se e recorda: "Califórnia, bom tempo, literatura medieval, não tinha a mínima noção de negócios. Era a antítese daquilo que fazia. Mas acabei por dizer: "Estou a caminho.""

E nem olhou para trás. "O mundo académico é muito diferente do empresarial. Foi difícil para mim nos primeiros anos. Mas ter apoio familiar foi imprescindível", garante Cidália. Isso e, apesar de então só ter 27 anos, já ter uma carreira preenchida: "Já tinha viajado por todo o mundo, não estava a prescindir de algo que ainda não tivesse feito", afirma.

Mas, se no mundo académico ser mulher nunca fora um problema, o mesmo não pode Cidália dizer do mundo dos negócios. Sobretudo quando se é dona de uma empresa que constrói estradas. "Íamos a reuniões com um engenheiro que era um miúdo, que era nosso empregado, e os outros empresários falavam para ele e não para nós", lembra. Natália lamenta que ainda hoje isso por vezes aconteça, sublinhando que "mulheres em cargos de poder deixam algumas pessoas desconfortáveis". Cidália concorda e explica que o setor em que trabalham "ainda é muito dominado pelos homens", mas "quando aparecemos vezes e vezes sem conta à mesa das negociações as pessoas percebem que viemos para ficar".

Vieram para ficar e foram muito bem-sucedidas. A empresa teve nos primeiros anos um crescimento vertiginoso e, apesar de ter sofrido com a crise financeira, sobreviveu. Hoje, e muitas vezes confrontada com dificuldades para encontrar quem queira um trabalho tão pesado, a M. Luis Construction aposta em ajudar quem precisa. "Trabalhamos com empresas de segundas oportunidades, contratando ex-reclusos. Reintegramo-los na sociedade e eles tendem a ser os que se esforçam mais. Empregamos também cada vez mais veteranos. Trabalhamos com organizações que apoiam mães e crianças", explica Natália, que não hesita em ir aos estaleiros ver como estão a correr as obras. Mas sem nunca abdicar dos saltos altos. "Estas são as minhas botas de construção", diz, apontando para as botas de pele preta brilhantes e salto alto que usa naquela manhã de neve em Washington. "São fáceis de limpar", garante.

Um presidente no estaleiro

Foi o sucesso e a preocupação com a sociedade da família Luís que em 2013 levou o presidente Barack Obama a homenageá-la como exemplo do sonho americano. Semanas antes, Natália e Cidália tinham estado na Casa Branca para um encontro de empresários com o presidente e Obama decidiu ir até à sede da M. Luis Construction para um discurso. Cumprimentou as irmãs, à frente da empresa desde 2008, saudou os pais - "agora já sei onde foram buscar o bom aspeto!" - e teve uma palavra para cada uma das crianças. "Foi espetacular!", recorda Natália, enquanto Cidália reconhece como "foi muito bom, num país com a dimensão dos EUA, sermos reconhecidos como família por um presidente que está em função".

Diante dos empregados reunidos na fábrica de asfalto em Rockville, Mary-land, Obama começou por contar o percurso da família - uma "história sobre o que a América representa. Começas. Se calhar não tens muito, mas estás disponível para trabalhar arduamente e para esperar. As oportunidades existem e és capaz de dar uma vida melhor à tua família, aos teus filhos, aos teus netos".

Em termos políticos, as irmãs até garantem ser "bastante moderadas". Naturalizadas americanas aos 14 e 17 anos, Natália e Cidália não esquecem o juramento que fizeram naquele dia em que se tornaram oficialmente americanas. "Nessa altura, fizemos uma promessa: proteger este país e isso para mim significa seguir numa direção positiva mesmo quando é difícil. Tem que ver com a forma como se protege a nação e a presidência - não a pessoa, a instituição.

Temos de encontrar forma de ser úteis", explica Natália. Depois da homenagem de Obama, a empreiteira não hesitou em aceitar um convite de Donald Trump para a Casa Branca. "Tenho pena de o presidente não ter um filtro melhor. Mas é uma pessoa generosa. Eu tive uma bolsa dele para a Universidade da Pensilvânia no meu ano entre o liceu e a universidade. É uma boa pessoa. Tem mais mulheres nas suas empresas do que a média nos EUA e paga-lhes o mesmo que aos homens. E pela primeira vez está a cumprir as suas promessas. Para o bem e para o mal", diz, admitindo que esta posição já lhe custou algumas amizades. Destacando o pragmatismo da sua forma de encarar a política, Cidália garante querer "fazer parte da solução, não do problema. Num mundo de divisões, queremos mais união".

Uma casa portuguesa

Apesar de ser no Maryland que cresceram e de ser lá que a empresa está sediada, Natália e Cidália vivem em Washington D.C., no seleto bairro de Georgetown. "Vivemos na mesma rua, a cinco casas de distância, os nossos filhos vão à mesma escola. Temos um estilo de vida muito tradicional apesar de trabalharmos num setor pouco tradicional. E de fazermos as coisas de forma diferente", garante Natália.

E Portugal continua a fazer parte do dia-a-dia das irmãs. "Toda a minha mobília foi feita em Portugal. Os armários são de oliveira. Comprei na Atrium, uma empresa portuguesa aqui, que pertence aos filhos de um antigo adido militar. Quem entra em minha casa sabe que aquela é uma casa portuguesa", garante Natália. O marido, António, que conheceu em Portugal numa aldeia vizinha da dos pais, fala quase só português com os filhos. A própria Natália já luta um pouco para encontrar as palavras certas e, admite que à medida que os rapazes vão crescendo e os trabalhos da escola vão ocupando cada vez mais tempo, vai sendo cada vez mais difícil.

Com um marido americano, Cidália admite que não fala português em casa, mas canta - "só consigo cantar em português. Adoro cante alentejano. Canto para a minha filha em português. E leio em português. Muito". Ainda na música, e depois de uma experiência falhada numa casa de fado nos Açores, até o marido de Cidália se rendeu à nova geração de fadistas. "Adoro a evolução do fado para algo mais jazzy. Porque tem um apelo mundial", explica a empreiteira. Já na cozinha, os gostos são mais ecléticos, e, se o porco fica de fora, um bom bacalhau à Gomes de Sá ou uns pastéis de bacalhau são apreciados pelos Luís-Akbar.

Ainda hoje Natália e Cidália recordam com nostalgia os verões que passavam em Portugal, com os primos, na aldeia. "Vinham primos da Suíça, de França, da Alemanha, dos EUA. Íamos para a aldeia e trabalhávamos. O meu avô continuava na agricultura e nós íamos descascar milho." "E as batatas!", interrompe Natália, antes de acrescentar: "O céu era azul, o sol era quentinho, andávamos na terra. Ao fim do dia estávamos todos sujos. Era fantástico!"

Talvez por isso continuem a vir a Portugal com regularidade. "Eu vou duas vezes por ano a Portugal, geralmente. Uma vez no inverno e fico por Lisboa. E uma no verão em que vou à aldeia", conta Cidália. E a filha adora. "Estive em Portugal há duas semanas para o Conselho da Diáspora [a que pertence] e a Sofia e o meu marido vieram passar a semana entre o Natal e o Ano Novo e fomos para Azeitão, para a quinta de uma amiga nossa. A miúda delira completamente", garante, antes de acrescentar: "Um dia ainda vai ficar em Portugal. Adora agricultura, o campo, os animais. Todas as coisas de que eu nem gostava assim tanto", ri.

Em Washington DC

Publicado originalmente a 9 de fevereiro de 2018

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