"As coisas materiais que temos não nos tornam felizes"
Já muitos pais terão dito um dia aos filhos que têm de comer a comida toda até ao fim porque noutras partes do mundo há muitas crianças que vivem na miséria e morrem à fome. Quando dizia às filhas gémeas que alguns meninos não tinham comida em África, a mãe de Anja e Tina Ringgren Lovén estaria longe de imaginar que isso mudaria para sempre a vida da primeira. África ficou para sempre no seu imaginário e o sentimento de que tinha de fazer algo para melhorar a vida dessas crianças nunca a abandonou. Mesmo quando tinha um bom emprego como gerente de uma loja de roupa na Dinamarca. Uma casa. Uma vida, que alguns poderiam considerar boa, mas que não a preenchia. Vendeu tudo, tornou-se voluntária em África e depois fundou a sua própria ONG. Há quatro anos e meio chegou à Nigéria, onde conheceu o marido e pai do filho. Onde, a 30 de janeiro do ano passado, salvou Hope de morrer, precisamente, à fome. Tinha sido abandonado pela família, que o acusou de ser bruxo. A fotografia em que surge a dar água e bolachas a uma criança moribunda tornou-se viral nas redes sociais e conseguiu captar a atenção do mundo. Este é um dos resumos possíveis da história da vida de Anja Ringgren Lovén, de 38 anos, mas há mais para contar. Muito mais. E foi isso que ela fez esta semana, em entrevista ao DN, no Estoril, onde esteve como uma das oradoras convidadas das conferências internacionais que ali acontecem de dois em dois anos.
"Perguntava à minha mãe e ela dizia: Anja, eles morrem de malária, sida, cólera, tifo, isso preocupava-me... Na escola, ainda muito nova, fiz um projeto sobre crianças africanas. Eu sabia e queria um dia fazer a diferença", explica, com entusiasmo, mesmo depois de uma noite mal dormida a tentar recuperar o mais rapidamente possível as malas de viagem extraviadas a meio da viagem para Portugal. "Quando tinha 23 anos, era hospedeira de bordo, porque era a única maneira de viajar. Antes andei pelo Médio Oriente dois anos, não quis ir para a universidade. Precisava de explorar o mundo. A minha irmã estudou na universidade, durante sete anos. Eu nunca mais fui para a escola depois de completar o liceu. Estive no Egito, Jordânia, Israel. Naquela idade sentia-me imortal. Mas subitamente o meu mundo virou do avesso. A minha mãe tinha cancro no pulmão. Morreu. Eu tinha 23 anos. A morte dela, o sofrimento que se seguiu, foi grande. Perdi muito peso, fiquei doente, durante anos não sabia o que fazer da vida. Mas depois percebi: se não for forte, como posso ajudar os outros? Levei tempo para ultrapassar essa perda. Depois mudei-me para outra cidade e comecei a trabalhar numa loja de roupa. Não era o meu sonho. Mas foi onde a vida me levou e eu não estava no controlo da minha vida. Na loja tinha colegas muito bons e, quando estamos rodeados de coisas boas, a vida voa depressa, quando estamos tristes, a vida passa devagar. Tinha 25 anos quando comecei na loja. Um dia, em 2008, estava em casa e vi um documentário da BBC sobre crianças perseguidas por bruxaria em África. Fiquei em choque. Sabia que morriam de malária, cólera, mas com este tipo de tortura? Dez mil crianças, todos os anos, mortas, enterradas vivas, queimadas vivas, etc... Quando fiz 30 pensei: não sou casada, não tenho filhos, trabalho sem parar como gerente de loja, mas não faço nada na vida que realmente tenha valor para mim... não... não quero isto... o sonho de África, é agora ou nunca... Tive de ir atrás do meu sonho".
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Seguiu como voluntária para o Malawi e para a Tanzânia. Antes vendeu tudo. Casa. Carro. Televisão. "Ser voluntária custa dinheiro. Durante três anos e meio não tive casa. A minha irmã gémea deixou-me viver com ela e o marido, sem pagar, somos muito próximas. Ficava no sofá dela. Só tinha duas caixas de pertences." Talvez não sentisse que precisava de mais. "Sim. Todas essas coisas materiais que temos nesta vida não nos tornam felizes." Em 2012 estabeleceu então a sua própria ONG, a que chamou DinNodhjaelp. E no ano seguinte chegou à Nigéria. Aí conheceu o marido, David Emmanuel Umem, estudante de Direito. "Ele tinha 15 anos quando começou a lutar pela defesa dos direitos das crianças. Já esteve em mais de 300 missões de salvamento." Juntos fundaram a African Children"s Aid Education and Development Foundation, no estado de Akwa Ibom, no Sudeste da Nigéria. "Nós fazemos programas de sensibilização que são muito importantes para termos contacto com as pessoas das aldeias. Foi assim que soubemos do caso de Hope. Naquele dia vínhamos de um salvamento que não tinha dado resultado, quando o meu marido recebeu um telefonema de um homem que falava de uma criança em muito mau estado, que não teria mais de 2 anos. O homem tinha participado num desses programas de sensibilização há dois anos e guardou o número do meu marido no seu velho telemóvel Nokia." Anja não acreditava que fosse uma criança tão pequena, pois, das 48 que tem no centro, a mais nova que salvaram tinha 4 anos. "Normalmente não iríamos sem preparação. Mas eu disse ao David "vamos". Não tínhamos proteção policial. Hoje já só saímos com proteção policial porque o mundo todo nos conhece. Seguimos o nosso instinto e coração." Estavam em dois carros, num deles estava o filho, David Jr., de 1 ano na altura. No outro uma equipa de jornalistas dinamarqueses que os acompanhava. "Nós precisávamos de uma desculpa para estar lá e o homem disse que devíamos fingir ser missionários que iam provar carne de cão." Assim foi. "Quando estávamos lá a falar com o homem que vendia a carne de cão, o meu marido disse para olhar discretamente. Olhei, foi então que vi Hope, muito frágil. Caminhei na direção dele e perguntei: "O que há de errado com esta criança?" O homem disse que ele tinha fome. Perguntei se podia dar-lhe água e bolachas. Ele respondeu que sim. Quando me baixei para lhe dar bolachas e água, um dos jornalistas dinamarqueses também se baixou e tirou a foto que se tornou viral. Nunca imaginei este impacto."
Anja e a sua equipa levaram o menino para uma clínica. Pelo caminho, ela decidiu chamar-lhe Hope. Das muitas tatuagens que ela tem, há anos, uma na mão diz precisamente Hope. "Quer dizer Help One Person Everyday". O menino passou um mês no hospital e com ele, 24 horas por dia, esteve a enfermeira nigeriana Rose. "Hoje chamamos-lhe Mama Hope, ela é a mãe de Hope, no sentido em que ela é que cuidou dele no hospital. Ela teve um grande papel na sua sobrevivência", diz, explicando que não gosta de ficar com todo o reconhecimento para si e tudo o que foi alcançado é fruto de um grande trabalho de equipa. O impacto da fotografia tem, para ela, dois lados. O positivo é o mundo saber o que se passa e os donativos terem aumentado. Vieram até do Dalai Lama, com quem Anja se vai encontrar a 4 de setembro. "Esse é o dia do meu aniversário." Os donativos permitiram ampliar o centro, com uma escola e uma clínica. Jornalistas de todo o mundo, dos EUA ao Irão, telefonam-lhe a pedir entrevistas. O lado negativo afeta mais a sua família. "David, eu e o meu filho, David Jr., corremos um grande risco de sermos sequestrados. Nós somos um alvo agora", confessa, garantindo que o governo da Nigéria não gosta que ela ande a dizer por aí que há crianças acusadas de bruxaria que são perseguidas e mortas no país. "Aprovaram uma lei que proíbe acusar uma criança de ser bruxa, mas na verdade nada é feito para implementá-la. A ignorância tem que ver com a superstição e também com o facto de o governo da Nigéria ser muito corrupto e não usar o dinheiro para a educação. Milhões de crianças nigerianas não vão à escola e quando tiramos às crianças a possibilidade de irem à escola isso trava o desenvolvimento de toda a sociedade." Atrás da superstição, além de ignorância, que está ligada à pobreza, está também o negócio do exorcismo, "praticado por autoproclamados pastores que pedem dinheiro às pessoas para tirarem os demónios aos filhos". Pondera então abandonar a Nigéria? "Não. Faço precisamente o contrário. Luto." A família de Hope não foi entretanto encontrada mas existe um processo em tribunal contra ela. Ele e o filho de Anja "desenvolveram uma ligação especial". Ao contrário do que acontecia com ela, para David Jr. as crianças ameaçadas de África não estão só no imaginário. Fazem parte da sua realidade.
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