Opinião de Virginia López: A Espanha em que cresci

Virginia López era jornalista e correspondente de vários meios de comunicação socal em Portugal. Neste texto analisa como está diferente o seu país.
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A Espanha em que cresci era uma Espanha de "valores". Uma Espanha onde o casamento era para toda a vida, em que o homem trazia o dinheiro e conduzia o carro, enquanto a mulher ficava em casa a preparar a comida e fazer as camas. Uma Espanha onde a mãe levava os filhos à escola e ficava para as reuniões de pais. Uma Espanha onde era o pai que escolhia os castigo, dava a mesada e pronunciava a última palavra.

Cresci numa Espanha onde se comia primeiro e segundo prato, uma Espanha em que tudo parava na hora da sesta. Uma Espanha em que se ia a missa e bebia-se o vermouth com roupa de domingo. Uma Espanha onde crianças não pedíamos tablets nem bebíamos coca-cola, em que tínhamos de esperar a autorização dos adultos para falar e em que podiam dar-nos uma bolachada em qualquer lugar público sem que ninguém dissesse nada.

Cresci numa Espanha onde as mulheres começavam a tomar a pílula de forma discreta (o dia que descobri a da minha mãe ela disse-me que era para a dor de cabeça) e uma Espanha onde só algumas mulheres -se podiam pagar e sem contar a ninguém- iam abortar a Londres quando não queriam trazer mais um filho ao mundo.

Cresci numa Espanha onde se estudava em escolas de freiras e de padres, as meninas separadas dos rapazes, de farda, e onde cada manhã, em pé, rezávamos um pai nosso antes de começar as aulas; uma Espanha em que respeitávamos os professores quase tanto -ou mais- do que aos nossos próprios pais. Uma Espanha onde se estudava em castelhano, onde não se viam negros, nem árabes nem sul-americanos pelas ruas. Uma Espanha onde não havia lojas de chineses nem se comia comida que não fosse a nossa. Uma Espanha onde estudamos a nossa história, a Reconquista dos Reis Católicos aos mouros, a Época das Descobertas de Cristóvão Colombo, as grandes batalhas ganhas e nunca as grandes derrotas (tive de vir a Portugal para saber o que aconteceu em Aljubarrota). Uma Espanha onde não se estudava sobre o Franquismo nem sobre a guerra civil espanhola. Uma Espanha onde não se falava dos mortos, nem das fossas comuns, exeto se na tua família tivesse calhado alguém do "bando contrário".

Cresci numa Espanha que queria ser moderna e por isso abriram as televisões privadas e trouxeram programas de fora - como o das Mama Chico, mulatas brasileiras que dançavam samba praticamente nuas- e programas de cultura geral que nos faziam parecer mais inteligentes. Uma Espanha onde chegou o comando à distância e vídeo VHS, onde víamos filmes estrangeiros, mas sempre previamente dobrados ao castelhano - só quando me apercebi que os lábios não batiam certo comecei a perguntar-me o que se passava, até lá sempre achei que todo o planeta falava espanhol.

Uma Espanha onde as raparigas voltávamos a casa sempre acompanhadas, onde só havia um telefone fixo e as nossas mães sempre perguntavam: quem a chama, antes de passar o auscultador. Uma Espanha onde já não esperávamos pelo casamento para perder a virgindade, mas ainda sonhávamos com encontrar o príncipe encantado. Uma Espanha onde os casamentos eram pela igreja, onde os gays "não existiam", muito menos as lésbicas, não havia ainda "orgulho" nem aspiravam a casar entre eles. Uma Espanha onde cada véspera de Natal, jantávamos em família, com a televisão ligada à espera da mensagem do Rei, e a minha mãe dizia quão maravilhoso seria a filha namorar com o príncipe, como se pudesse adivinhar que uma jornalista chegaria a ser a Rainha de Espanha...

Uma Espanha onde as autonomias eram sinónimo de pratos típicos de bailes regionais. Sim, falavam outras línguas mas só entre eles, nunca connosco, e isso, naquela Espanha, parecia pouco importante. Uma Espanha onde havia terrorismo e onde chorei, como todos os espanhóis, quando ETA matou Miguel Ángel Blanco. Uma Espanha de mãos brancas e minutos de silêncio, uma Espanha que se estremeceu com os atentados de 11 de março; uma Espanha que era de todos, mesmo que alguns já não se sentissem completamente espanhóis. Não se falava disso naquela Espanha onde cresci, não se aprendia sobre pluralismo nos manuais escolares que recebi. E enquanto os políticos dos dois grandes partidos (PP e PSOE) construíam a Espanha de hoje, por baixo da mesa ofereciam mais autonomia a algumas regiões em troco de mais votos. Até que a Catalunha pediu um pedaço da Espanha onde cresci e tudo se desmoronou.

Na Espanha onde nasci (1979) nasceram também outros tantos milhões de espanhóis que talvez cresceram numa Espanha diferente da minha e eu nunca o soube. Nesta Espanha também cresceram os 5 homens (onde estão as mulheres?) que disputam o futuro da nossa Espanha. Pédro Sánchez (1972), Pablo Casado (1981), Pablo Iglesias (1978), Albert Rivera (1979) e Santiago Abascal (1976). Como é possível todos termos crescido quase ao mesmo tempo, na mesma Espanha, e sermos todos tão diferentes?

O que acontece é que nestes 40 anos, Espanha mudou muito e como diriam os mais saudosistas, Espanha já não é o que era. Agora há negros e árabes e chinenes pelas ruas de Espanha. Agora existem o catalão, o euskera e o galego como línguas co-oficiais junto com o castelhano. Agora as mulheres podem abortar livremente sem ter de ir às escondidas a Londres. Agora os gays podem casar. Agora as pessoas já não se casam obrigatoriamente pela igreja, e agora os casamentos não duram para sempre. Agora já não temos telefone fixo e todos andamos por aí com os nossos tablets e smartphones, vemos televisão à la carte e começamos a perceber os filmes em versão original e até as músicas cantadas em inglês! Os espanhóis começaram a voar em low cost e a conhecer Europa de interrail. Os espanhóis estudam noutros países graças aos programas Erasmus. Agora ficamos #modernos e já não gostamos das touradas. Fomos campeões da Europa e do Mundo de futebol, mas agora também gostamos de Fórmula 1, ténis e até golf.

Agora as mulheres decidem se querem ser mães, se querem ser empresárias, se querem ser políticas se querem casar e também com quem querem ir para a cama. As mulheres estivemos nas mesmas faculdades que os homens e tiramos os mesmos cursos e em nenhum deles havia disciplinas que se chamassem "Como passar a ferro uma camisa" ou "Como fingir um orgasmo". Talvez as nossas mães fossem umas expertas neste tipo de matérias, mas as espanholas de agora sabem quando querem dizer "não", e dizem-no, mesmo que alguns homens -e alguns juízes- continuem a pensar que as coisas deveriam ser como antes.

Na Espanha de hoje há bandeiras de diferentes cores, há línguas com diferentes sonoridades, há mais vocabulário para dizer as mesmas coisas; há comida diferente, há mais oferta cultural, há mais oportunidades de vida e também há mais concorrência profissional. Na Espanha de hoje há mais de tudo e menos de quase nada. E também há mais partidos, mas que disputam o mesmo poder de sempre.

Nestas eleições vemos 5 Espanhas (ou até mais) dentro de uma só. A Espanha da família tradicional, a dos valores, a Espanha patriarcal, onde o homem continua a ter a última palavra. A Espanha rural, a das touradas, a do campo e a da comida do antigamente. A Espanha grávida, a que só fala espanhol, a que faz sestas, tapada com uma bandeira rojigualda. A Espanha dos espanhóis, com muros a conter um Mediterrâneo sangrante, a que reclama Gibraltar e sonha com a reconquista de territórios. A Espanha de Franco que estava adormecida, mas que acordou porque houve outra Espanha que não soube crescer. É a Espanha da democracia, que aproveitou as vacas gordas para encher os bolsos. A Espanha das infraestruturas megalómanas e desnecessárias, a Espanha do tijolo, a Espanha dos políticos corruptos e dos nacionalismos interessados. Essa Espanha que se acha importante quando se senta à mesa com Europa, mas que perdeu terreno na pesca e na agricultura, que perdeu influência na Ibero-américa e não soube aproveitar a sua relação com Portugal. A Espanha que se esqueceu do interior, que se perdeu em discursos baratos e que não da resposta aos jovens que estudam cursos universitários para terminar como mileuristas ou até desempregados. Também está a Espanha probre, que abriu fronteiras, trouxe emigrantes, deu liberdade e aprendeu a ser tolerante com as difereças. Mas também está a Espanha que pediu mais. Mais autonomia, mais direitos, mais igualdades e também mais mudança. Mudança no sistema político, mudança no sistema constitucional e até mudança no regime nacional. Nestas eleições está a Espanha que já não é o que era e a Espanha que que quer voltar a ser como sempre foi.

E nesta Espanha do "salve-se quem puder", da televisão lixo, das redes sociais, das audiências e dos reality shows, do dinheiro fácil e da liberdade que se mistura com libertinagem, falta a Espanha da tolerância e da convivência. Falta a Espanha do diálogo. Falta a Espanha da compreensão e da empatia, a Espanha onde todos possamos entender que mesmo tendo crescido na mesma Espanha podemos pensar e sentir de formas diferente. Falta aceitar que um catalão tem direito a não sentir-se espanhol e não querer pertencer a Espanha. E falta querer compreender as razões que o fazem sentir-se assim. Também falta compreender porque alguém quer agora voltar a proibir o aborto e os casamentos gay e acabar com a lei da violência machista. Falta entender os homens que se sentem ameaçados pelo crescimento das mulheres e falta respeitar e entender as mulheres que defendem a sua igualdade e liberdade. Falta entender que ainda há quem goste de touradas e entender também quem luta pelos direitos dos animais e a proteção do nosso planeta. Falta entender que as línguas, em Espanha, não são de uns ou dos outros, são nossas, de todos por igual, e todos podemos aprender desde crianças, como também estudamos inglês, francês ou até mandarim. Falta entender que em Espanha há quem continue a defender o Rei, e falta entender que outros prefiram mudar para um sistema republicano.

E enquanto não entendamos que falta entender-nos, não vamos encontrar reposta para esta Espanha que mais parece o condomínio das desavenças. A fim de contas, nenhum dos atuais dirigentes políticos entendeu o mais simples: que falta entendimento. Acusam-se e atacam-se mutuamente desde os seus Egos inchados e com mentiras camufladas incham a crispação dos espanhóis que pensam diferente. E a única coisa que fazem é piorar o ambiente. E eu pergunto-me, como é possível que no século XXI de esta #espanhamoderna continuemos a ser tão infantis e a não ser capazes de entender-nos numa Espanha que queiramos ou não vai ter de ser para todos a mesma.

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