A bailarina que levou o pastel de nata até Hollywood
Paredes de azulejo, azeitoneiras de metal em cima das mesas de madeira, fotografias dos elétricos amarelos nas paredes, pastéis de nata, mil folhas e rins impecavelmente alinhados nas vitrinas. Um cliente fotografa entusiasmado a montra e manda as imagens para a família escolher o que quer que ele leve. O cenário é o de uma qualquer pastelaria típica de bairro lisboeta, mas fica situado a mais de 9 mil km de distância da capital portuguesa. No n.º 13317 da Ventura Boulevard, em Sherman Oaks, funciona desde 10 de junho de 2005 a pastelaria-restaurante Natas Pastries. Muitos são os que ali vão de propósito só para provar a especialidade da casa, que, como o próprio nome indica, é o pastel de nata. O sucesso tem sido tão grande que Fátima Marques, a proprietária, lisboeta, se prepara para abrir em breve uma segunda pastelaria naquela zona da Grande Los Angeles. Entre os seus clientes contam-se algumas das estrelas mais famosas de Hollywood, como, por exemplo, Nicole Kidman ou Joseph Gordon-Levitt, como atestam algumas das fotografias que tem afixadas à entrada do estabelecimento.
"Logo pouco depois de abrir, o LA Times publicou um artigo sobre isto. Eram filas enormes à porta", conta ao DN Fátima Marques. "Não há mais nada de pastelaria ou restaurante português aqui na zona de Los Angeles. Aos fins de semana vêm cá portugueses desde Santa Bárbara ou San Diego, fazem horas de carro para chegar aqui." Mas como nem só de pastel de nata poderia viver o seu negócio, Fátima começou a introduzir outras especialidades da cozinha portuguesa. Aberto diariamente das 08.00 às 21.00, o Natas Pastries serve pequenos-almoços, almoços e jantares. Há bacalhau à brás, bacalhau com natas e à lagareiro. Os dois primeiros são mais populares. "À lagareiro é mesmo só para quem gosta. Temos de ter o cuidado de avisar de que o bacalhau tem espinhas, pois aqui estão habituados a tudo sem espinhas." Na ementa da casa há ainda outros pratos como feijoada, caldeirada, bitoque, carne de porco à alentejana, sopa da pedra ou caldo-verde. "Eles gostam mais da sopa da pedra. O caldo-verde servimos com ou sem chouriço, pois temos de ter em conta que aqui há muita gente que é vegetariana." Há ainda outros pratos de fusão. "Adaptei um pouco as coisas para ter clientes de várias nacionalidades a vir aqui." E também têm a tradicional bica? "Não consegui distribuidor para ter aqui café português, com muita pena, temos uma mistura de cafés nossos, em que a maior parte é o italiano Lavazza. Temos a típica bica, café expresso, mas também o café americano como bebem cá." Fátima sempre gostou de cozinhar, mas apenas por mero prazer, pois não é essa a sua formação. A dança, sim, essa é a área a que mais anos da sua vida dedicou.
Nascida em Lisboa, na Portela, quando acabou o liceu decidiu viajar um pouco pela Europa. "Tinha a minha irmã em Amesterdão. Depois fui trabalhar para Palma de Maiorca e Tenerife, para uma empresa como animadora, em hotéis em que uns tratavam das crianças, brincavam com elas, outros faziam desporto... era uma equipa de três a cinco pessoas ao todo. Ainda trabalhei para eles durante um ano e meio. Depois fui para Londres estudar jazz porque queria ser bailarina. Também fazia ballet mas eu gostava muito de jazz e, em Londres, via as bailarinas americanas e gostava muito mais da maneira como elas dançavam. Tinham mais soul e, então, pensei que gostava de vir para cá. Consegui uma bolsa de estudo com a duração de um ano para vir estudar para os EUA. E depois dessa consegui ainda uma outra." E foi ficando. Desde os anos 1980. Até aos dias de hoje.
Perdeu a conta ao número de audições a que foi. Entrou em vários videoclips e espetáculos. Também foi professora de dança nalguns estúdios particulares e, durante algum tempo, tentou ganhar dinheiro com isso. Mas logo percebeu que apesar de amar a dança não conseguiria viver dela. "A verdade é que a dança não paga", desabafa, relatando as dificuldades. "Eu não gostava muito das audições. Aqui há milhares de pessoas e, naquela altura, para qualquer coisa, o mínimo que fosse, estávamos ali o dia inteiro à espera. E sem saber se ia ser escolhida ou não." Além de dançar também chegou a cantar. "Uma noite estava numa discoteca a dançar - mas nem era nada de trabalho - e vieram perguntar-me se eu queria entrar num grupo e fazer coreografia. Eu disse que sim. Eram as The Skeme. Um grupo com três raparigas afro-americanas. Tive aulas de canto. E cantava com elas as músicas. Um dos temas - intitulado You Turn Me On - chegou a passar nas principais rádios e até editaram um álbum." No ano em que saiu essa música, 1987, Madonna lançava Who"s That Girl, da banda sonora do filme homónimo. "Uma vez as The Skeme fizeram a primeira parte de um concerto do Bobbie Brown", conta, explicando que depois de o grupo acabar decidiu dedicar-se à música. Só por si. Por mero prazer.
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"Comecei a escrever música para mim e até fiz um curso de engenharia de som de um ano e meio. Hoje em dia tenho um estúdio em casa", conta, explicando que, no final dos anos 1990, já tinha deixado de ir a audições. "Eu sempre tive de ter vários trabalhos. Fazia marketing para uma empresa de excursões e, como falo seis línguas, fazia também dobragens. Trabalhava com várias agências, ia com pessoas ao médico ou traduzia para advogados. Na altura não era preciso licença para fazer traduções, agora sim, havia aqui poucas pessoas a falar português. Também fiz trabalhos em português brasileiro." Além do português e do inglês, Fátima, que hoje já tem dupla nacionalidade, fala também o francês, o holandês, o alemão e o espanhol. Continua a dançar, claro, mas não como profissional. "Música e dança são os meus hobbies. Eu se não for às aulas de dança fico neurótica, tenho de ir, pelo menos três dias por semana. Ya. Isso relaxa-me. E quando saio gosto de dançar toda a noite do princípio ao fim. Que outra maneira há de sair à noite? Estar parado é um desperdício", diz, entre risos.
Em 2001-2002 decidiu que queria voltar para Portugal. E até pensou em abrir uma escola de dança em Lisboa. Na altura não havia muitas na capital portuguesa, ao contrário do que acontece hoje em dia. Ela e a irmã sempre tiveram uma veia artística. Paula, que é mais velha do que Fátima, é uma das cofundadoras da extinta banda de reggae One Love Family. Foi algo que herdaram dos pais? "Não. O meu pai era motorista e a minha mãe doméstica. Ele já morreu. Ela tem 83 anos. Acho que foi por sairmos de casa muito cedo. Eu saí quando tinha 16 anos. Tínhamos influência de amigos que tinham estado fora de Portugal. Foi uma combinação de várias coisas."
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Tudo estava encaminhado para regressar ao país de origem, quando eis que em 2003, numa festa, conheceu o homem que viria a ser seu marido. E desistiu da ideia de abandonar os Estados Unidos. Foi ficando. Mais uma vez. "O meu marido, Tyler, é um dos vice-presidentes da Fox Studios, responsável pelas aplicações para telemóvel dos programas todos. Ele adora Portugal." Casaram em 2004, cá e lá, pois a família de Fátima não podia vir aos EUA. "Casámos na terrinha dos meus pais, que é a Ramalheira, em Freixianda, numa igreja muito pequenina." Têm uma casa de férias na praia da Areia Branca, na zona da Lourinhã, já passearam pelo Algarve, Óbidos, Porto, querem conhecer mais. Muito mais. "Olhe, como os meus clientes, que antes de irem a Portugal vêm aqui sempre pedir-me sugestões", diz, perguntando ela própria como estão as coisas atualmente no seu país e como está tudo a correr com o atual boom de turistas que tem sido amplamente noticiado pelos media.
Mas antes de conhecer Tyler, Fátima já tinha na cabeça a ideia de aprender a fazer pastéis de nata. "Em 2003 tinha estado numa pastelaria da Lousã, que é onde vive a minha irmã, a aprender com um pasteleiro. Tirei notas, fiz filmagens e tudo." Depois de casar com Tyler pensou então: "Vou mudar de vida porque a dança não paga. Nós estamos a vida inteira a investir para ser bons dançarinos, estudamos muito, gastamos dinheiro e, quando vamos depois fazer um trabalho, na maior parte das vezes não compensa. Por isso decidi fazer uma coisa nova, completamente diferente." E foi assim que nasceu o Natas Pastries.
"Viu o rapaz que nos serviu? Ele é dançarino também. Já tive vários dançarinos a trabalhar aqui. Gosto. Um dançarino tem certas características: sentido de urgência, equilíbrio, dinâmica a atender os clientes", nota, explicando depois como conseguiu ir apurando, ao longo do tempo, a sua receita do pastel de nata. "Quando abri o espaço empreguei um chef europeu que tinha duas pastelarias na Bélgica. E também trouxe um pasteleiro português aqui duas ou três vezes para dar formação a um mexicano que ainda hoje é o meu chef aqui no Natas Pastries. O Esteban é o chef de pastelaria. E o Pedro, que também é mexicano, é o chef de cozinha." Nem tudo foi fácil. "O pastel de nata é uma coisa muito sensível, aprendi lá, filmei, tirei notas, mas chegando cá era diferente, a farinha, o tamanho do ovo, a água, não ficava igual. Então tive de trazer cá o pasteleiro português para adaptar as coisas, perceber porque é que a massa não ficava logo boa à primeira, porque é que o creme não ficava logo bom. Por mais que não queira admitir, foi uma coisa que demorou tempo", reconhece Fátima, contente, apesar de tudo, com o resultado final da sua persistência.
"Muita gente me diz agora que eu faço aquilo que elas gostariam de fazer, mas, para mim, isto não era um sonho, assim propriamente dito. Não tinha qualquer experiência disto. Algumas pessoas diziam-me que eu estava maluca porque não tinha nenhuma experiência na área da restauração. Mas não tenho medo de arriscar. Não tenho medo de nada. Acho que devemos fazer o que queremos e ser persistentes." Hoje em dia o Natas Pastries é um sucesso e, além das vendas presenciais, tem bastantes encomendas para fora. "Temos entregas ao domicílio, catering, de todos os tipos de bolos e comidas." Cada pastel de nata custa 2,50 dólares (qualquer coisa como 2,30 euros) e de semana chega a vender 300 por dia. "Aos fins de semana são mais", afirma, revelando que, anualmente, tem um volume de negócios da ordem de um milhão de dólares.
"Eu e o Tyler decidimos não ter filhos. Queremos viajar e passar mais tempo em Portugal. Eu já não preciso estar aqui necessariamente para isto funcionar. Tenho um gerente. Funciona por si. Posso estar algum tempo fora. Agora no novo espaço que vou abrir vamos só servir pequenos-almoços e almoços. É uma zona de muito comércio", explica, referindo-se ao novo Natas Pastries que vai inaugurar em Thousand Oaks. "Talvez no futuro, um dia, quem sabe, ainda decidamos vender o negócio e ter mais tempo para nós, para viajar, sobretudo para conhecer melhor Portugal", confessa a portuguesa.
Fátima está habituada, há anos, às lideres de Hollywood. Na zona onde fica o Natas Pastries, Sherman Oaks, têm casa estrelas como a socialite Paris Hilton ou a cantora Demi Lovato. No passado viveram ali também atores como Marilyn Monroe e James Dean. Na Ventura Boulevard, precisamente, fica um dos postos de combustível em que Dean abasteceu o seu Porsche 550 Spyder prateado no dia em que morreu, a 30 de setembro de 1955, quando se dirigia para participar numa corrida de carros em Salinas. Entre os famosos nascidos em Sherman Oaks contam-se Jennifer Aniston e Elizabeth, Mary-Kate e Ashley Olsen. E entre os que cresceram ali estão Joseph Gordon-Levitt.
A dona do Natas Pastries e o marido são presença frequente em cerimónias como as dos Óscares ou as dos Emmys. Na edição deste ano dos primeiros o filme vencedor foi Moonlight do realizador Barry Jenkins. Na edição dos segundos do ano passado a série televisiva Guerra dos Tronos voltou a sair vencedora e bateu os recordes, acumulando um total de 38 Emmys (o recorde anterior pertencia à série de comédia Frasier com um total de 37).
Famosos ou não, os clientes de Fátima ficam deliciados por terem ali pastéis de nata, um bocadinho desse Portugal que já conheceram ou que ainda querem conhecer e do qual já muito ouviram falar por outros. "Esta zona está muito perto dos estúdios. Vem cá muita gente que trabalha nos bastidores dos filmes, por exemplo. Eu não conheço toda a gente, claro, às vezes nem reparo e são os meus empregados que me chamam a atenção. Vêm cá atores. Um dia entrou aqui a Nicole Kidman e deu-me um abraço. Não é que tenhamos ficado amigas, mas acho isso algo muito interessante. O José Mourinho também já cá veio. E aquele ator português, o Diogo Morgado", conta, deixando um desejo para este ano: "Quem eu gostava também muito que viesse cá um dia destes era o Cristiano Ronaldo." Quem sabe...
Em Los Angeles
A jornalista viajou no âmbito do parceria DN-FLAD